Bloco Nau da Liberdade contrapõe políticas manicomiais por meio da arte
Ronaldo tinha acabado chegar. Desceu do ônibus e foi em direção aos instrumentistas que ensaiavam próximos ao Auditório Araújo Vianna, no Parque Farroupilha. “Vocês começaram sem mim?”, questionou.
Ronaldo mora em Viamão, com suas irmãs. Ele mostra com orgulho o passe livre na carteira. “Se não fosse ele, não teria como vir a Porto Alegre todos os dias.” Em quase todas as manhãs da semana, Ronaldo participa da oficina criativa do Hospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP). Geralmente, ele almoça na instituição. Depois, segue para uma rotina de afazeres variados durante as tardes até que, no final do dia, participa dos ensaios do grupo Nau da Liberdade.
“Sou barqueiro”, responde Ronaldo, endireitando a postura, ao ser questionado sobre seu papel no grupo. “[A Nau] é o tratamento que melhora meu tratamento terapêutico”, ele define.
Partindo do pressuposto de que a liberdade é terapêutica, o grupo Nau da Liberdade se formou como forma de “produzir arte através da loucura”, como define uma das participantes, Mariana Nardi Dambroz. Ela integrou o grupo há pouco mais de um ano, após conhecê-los em uma viagem à Bauru (SP), quando apresentaram a peça de teatro que deu origem ao projeto. “Eu, como estudante de psicologia, me encantei com a liberdade de pensar saúde mental na rua e de formas alternativas. É surpreendente quando se percebe as diferenças de forma afetuosa.”
Desde 2018, o grupo montou um bloco de carnaval para somar às oficinas corporais atividades ligadas à música. Com ensaios semanais e abertos ao público, eles têm samba-enredo, bateria e brincantes.
Barqueiros
O elenco de 15 artistas é formado por estudantes, trabalhadores e usuários de serviços de Saúde Mental, inclusive ex-moradores do HPSP que hoje vivem em residenciais terapêuticos, usuários que ainda residem em unidades de moradia do hospital, mas que estão em processo de transferência para residenciais, e usuários de outros serviços da rede. No grupo, os usuários são protagonistas e autores das peças teatrais, junto com os trabalhadores e estudantes, e se reúnem para ensaiar três vezes por semana no São Pedro e em outras áreas de Porto Alegre, como a Redenção e a Orla do Gasômetro.
O grupo nasceu em continuidade à proposta do espetáculo “Azul como a Liberdade”, montado a partir de uma residência artística da companhia italiana Accademia Della Follia em Porto Alegre, em 2013. “Aqui, nos dividimos entre loucos diagnosticados e não-diagnosticados”, esclarece Israel Castro, residente da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e trompetista do bloco de carnaval da Nau. “O trabalho com os usuários de serviços de saúde mental nos permite perceber como a loucura é estigmatizada. Tirar as pessoas da caixa, trazê-las para o mundo e permitir que se expressem liberta.”
Mesmo desvinculado da Secretaria Estadual da Saúde, que subsidiava uma sede para a Nau da Liberdade até 2015, o grupo permanece atuante na comunidade psiquiátrica.
Da ideia de “sair da caixa”, surgiu o samba-enredo de 2019. Em uma oficina corporal, os participantes foram desafiados a se imaginar dentro de uma caixa. Ela podia ser grande, pequena, de diferentes formas e guardar diferentes coisas. “Hospício guarda. Hospício caixa”, escreveu uma das participantes. Deste verso, surgiram outros, em criação coletiva. Assim, organizaram um arranjo durante uma viagem à Marcha do Orgulho Louco, realizada anualmente em Alegrete.
Caixa guarda
guarda volume
guarda corpo
guarda gente
Caixa guarda
guarda volume
guarda corpo
guarda morto
Hospício guarda
hospício caixa
Eu não me encaixo
O psicólogo e professor universitário Márcio Belodi toca berimbau enquanto canta os versos. “Existe a figura da Idade Média da Nau dos Loucos, em que se jogariam todos os loucos em um barco mar adentro. Isso remete à nau que é o hospício, onde se jogam os loucos e os deixam inertes. A gente brinca com isso, com essa ideia. Já fizemos oficinas no Cisne Branco até”, conta. “É bonito. Inspira essa mudança ao falar de exclusão. Afinal, nada liberta mais do que a arte.”
Reforma Psiquiátrica
A estrutura de atendimento e cuidado da população que sofre de algum transtorno mental ainda passa por adequação. Fruto do fortalecimento da luta antimanicomial, a desativação gradual de hospitais psiquiátricos e a sua substituição por uma rede articulada de atendimento, ao menos desde a década de 1990, tem o nome de “desinstitucionalização”. O novo quadro da saúde mental no Brasil ainda em formação continua sendo, no entanto, alvo de disputa. Quinze anos depois da publicação da chamada Lei da Reforma Psiquiátrica, vigora no país um embate sobre o melhor modo de se atender a população com sofrimento psíquico tendo em vista o horror por muito tempo ignorado como o do Hospital Colônia de Barbacena, em Minas Gerais.
No entanto, em 2017, o então presidente Michel Temer (MDB) começou com uma política de desmonte da área ao cortar o repasse de R$ 77,8 milhões destinados aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em todo o país. A justificativa seria a “ausência de registros de procedimentos nos sistemas de informação do SUS”.
O Ministério da Saúde divulgou uma nota técnica propondo novas diretrizes de políticas nacionais de saúde mental e de drogas, no último dia 6. O texto, de 32 páginas, ataca diretamente demandas da luta antimanicomial abrindo precedentes para o retorno de terapias usadas amplamente no passado como a convulsoterapia – o uso de choques em casos extremos, onde o paciente não atende a comandos de maneira consciente -, bem como aponta a abstinência como melhor tratamento do que a redução de danos para o caso de dependentes químicos. Além disso, estimula a relação dos CAPS que trabalham com a lógica da redução de danos, com hospitais psiquiátricos e o fortalecimento das comunidades terapêuticas.
Sandra Mara Lopes da Silva é mãe de Diogo, diagnosticado com autismo. “A Nau transformou a minha e do meu filho. Desde que entramos, ele passou a ser mais articulado. Entrou e já disse o que queria ser, por sinal: Diogo do Ovo. Palhaço”, conta, com orgulho. “Eu nunca pude participar de muitas atividades. Sempre tive que cuidar dele. O que eu fiz? Vim ser palhaça também.”
Diogo chegou ao ensaio com uma caixa de som própria tocando sua música. “Quando tu está na Nau, tu esquece da vida. Quem passou por um manicômio sabe o que é, sabe o quanto quer esquecer. O que se quer é estar no mundo. A gente, da Nau, quer mostrar a nossa arte – que é louca também. Isso transforma a gente”, encerra Sandra.