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O racismo ganha uma batalha

O racismo brasileiro, que contesta a existência do preconceito e nega ao negro até mesmo o direito de se sentir ofendido, obteve uma vitória expressiva na Arena do Grêmio, na noite desta quinta-feira 18 em Porto Alegre. Três semanas depois de Aranha ser chamado de “macaco” e “preto fedido”, o goleiro do Santos foi xingado de “viado” e “branca de neve”, vaiado durante o aquecimento e também a cada vez que encostava na bola durante nova partida entre os dois clubes, desta vez pelo Campeonato Brasileiro. Foi uma clara demonstração por parte de muitos torcedores gremistas da “indignação” provocada pelo simples fato, vejamos só o tamanho do buraco, de ter denunciado o ato de racismo do qual foi vítima em 28 de agosto.

Como de costume, houve uma tentativa cínica de negar que as vaias a Aranha fossem uma crítica ao goleiro e, consequentemente, apoio ao ato de racismo anterior. Durante o jogo, vicejava nas redes sociais o argumento de “vaia ser normal no futebol”. Após a partida, essa tese foi encampada por dois repórteres ligados às Organizações Globo, um do SporTV e outro da RBS.

SporTV: Aranha, mas você não acha normal as vaias (sic), o que aconteceu de anormal além das vaias?

Aranha: Eu não ligo com vaia, com manifestação de torcedor, desde que seja do esporte. E a gente, sem ser hipócrita… Porque às vezes também a gente fala as coisas, todo mundo começa a achar o que quer. Todo mundo sabe que a vaia hoje foi diferente.

SporTV e RBS: Diferente por quê?

Aranha (olhando para a repórter da RBS): Você sabe por quê? Por que foi diferente?

RBS: É a pergunta que a gente quer saber.

Aranha: Por tudo o que aconteceu no outro jogo, ou não foi? Ou você concorda com o que aconteceu? Você concorda?

RBS: Eu não tenho que concordar com nada.

Aranha: Ah, você não tem… (que concordar ou discordar)? Por quê? Então você não tá nem aí, é isso?

A conversa é perturbadora e chocante em dois níveis. Em primeiro lugar, pelo fato de os jornalistas partirem do princípio de as vaias não terem relação com o episódio de racismo, uma conclusão que desconsidera todo o contexto e, portanto, configura uma clamorosa e patética mentira. Em segundo lugar, pela busca cega da “isenção” por parte da repórter da RBS diante do claro ato racista do jogo anterior, postura resultante, por óbvio, das regras da emissora e cujo resultado é a dissociação entre o jornalismo e sua causa primária, a defesa da verdade.

Por trás das vaias a Aranha e das perguntas feitas ao goleiro após o jogo está também a construção de uma falsa verdade, a de que o goleiro não foi vítima de um ato racista, mas culpado por fazer torcedores gremistas “perderem a cabeça” ao fazer cera durante o jogo entre Grêmio e Santos pela Copa do Brasil. Defenderam essa tese, para ficar em dois exemplos, diretores do Grêmio, e Eduardo Bueno, também da SporTV. O último a fazê-lo foi Luiz Felipe Scolari, o artífice do 7 a 1, que comparou as denúncias de Aranha a uma esparrela.

O caso envolvendo o goleiro do Santos e a torcida do Grêmio é mais um na lista da moralidade alternativa que vigora no futebol, mas é também emblemático como ferramenta de análise da sociedade brasileira. Quem acusa Aranha, e quem silencia diante da pressão sofrida pelo goleiro, de uma forma ou de outra fortalece a reação à busca pela igualdade, contribuindo de forma perversa para a tentativa de “colocar o negro em seu devido lugar”, invisível e subalterno, onde não incomode com suas reclamações insolentes sobre o “suposto” racismo. É uma postura simplesmente abjeta, que ignora décadas de luta e, como disse o próprio Aranha, a dor de muitas pessoas cujo sofrimento está na base das leis contra o racismo.

Nós, do SinPsi, estamos solidários ao Aranha. É oportuno reproduzir a resolução 18 de 2002 do CFP que afirma:

Art. 1º – Os psicólogos atuarão segundo os princípios éticos da profissão contribuindo
com o seu conhecimento para uma reflexão sobre o preconceito e para a eliminação do racismo.
Art. 2º – Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a discriminação ou preconceito de raça ou etnia.
Art. 3º – Os psicólogos, no exercício profissional, não serão coniventes e nem se omitirão perante o crime do racismo.
Art. 4º – Os psicólogos não se utilizarão de instrumentos ou técnicas psicológicas para criar, manter ou reforçar preconceitos, estigmas, estereótipos ou discriminação racial.
Art. 5º – Os psicólogos não colaborarão com eventos ou serviços que sejam de natureza discriminatória ou contribuam para o desenvolvimento de culturas institucionais discriminatórias.
Art. 6º – Os psicólogos não se pronunciarão nem participarão de pronunciamentos públicos nos meios de comunicação de massa de modo a reforçar o preconceito racial.

Nosso silêncio é mais que omissão, é perpetuação do racismo.

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