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Problemas na conexão: A Assistência Social e as tecnologias digitais

Por Vinicius Saldanha de Jesus

Redes sociais, aplicativos, pix, 5G… Estamos todos conectados? Ou essa é uma ideia de quem está com a cabeça na nuvem? Em se tratando dos benefícios do uso da tecnologia digital, infelizmente há não apenas quedas, mas abismos nessa suposta conexão, embora seja verdade que estamos fortemente conectados…por uma ordem econômica e social perversa, excludente e injusta.

De acordo com pesquisa da Fundação Getúlio Vargas¹ com base em dados do Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação sob os auspícios da UNESCO, cerca de um a cada quatro brasileiros em 2020 ainda não utilizava a internet.  Esse montante corresponde a cerca de 47 milhões de pessoas, sobretudo componentes das classes D e E. A pesquisa apontou, também, a existência de consideráveis barreiras tecnológicas que impossibilitaram que uma parcela considerável de brasileiros recebesse o Auxílio Emergencial no contexto da pandemia de Covid-19, como a falta de um celular, falta de espaço de armazenamento no aparelho, falta de habilidade com o download e com o uso do aplicativo para solicitar o benefício, além da própria falta de acesso à internet.

Enquanto 7% do total de pessoas que não conseguiram obter o benefício o creditam à falta de um aparelho celular, no caso de pessoas das classes D e E esse percentual quase triplica, chegando a 20%.  No que diz respeito ao acesso à internet, enquanto 9% dos que não conseguiram o benefício o creditaram à falta de acesso à internet, nas classes D e E, esse percentual é de 22%. Os dados da pesquisa também apontam para o fato de que 23% das pessoas das classes D e E com acesso à internet e que não conseguiram obter o Auxílio Emergencial mencionaram como motivo a falta de espaço de armazenamento no celular para baixar aplicativos, no caso, o aplicativo da Caixa. Aponta-se, também, que é comum nessas duas classes o uso compartilhado de celular com outros membros do grupo familiar, o que tende a acarretar limitações importantes no uso. Para além desses aspectos, há de se destacar a falta de habilidade operacional relatada por uma parcela significativa dos indivíduos que tentaram e não obtiveram o benefício, correspondendo a 9% do total e a 18% quando analisada a classe “DE”.

As implicações desse cenário para o conjunto das políticas públicas fatalmente serão muitas e requerem análises aprofundadas nas mais diversas esferas. Aqui, entretanto, propõe-se tecer algumas breves considerações sobre os desafios que esse cenário impõe à Assistência Social. Trata-se de uma política que ainda carece da análise dos possíveis impactos do uso das tecnologias digitais nos próprios processos de trabalho e seus impactos para os trabalhadores da área, o que remete, no caso brasileiro, a um período muito recente, sobretudo a intensificação do uso dessas ferramentas em meio à pandemia. Mas aqui se busca chamar a atenção para o que esses dados revelam sobre grande parte do público atendido pela Assistência Social e sobre os desafios colocados no cotidiano profissional e para o próprio projeto societário inerente à Assistência enquanto direito do cidadão e dever do Estado.

A análise das condições de acesso à tecnologia digital por parte das classes D e E revela apenas a ponta do iceberg no que diz respeito às inúmeras e brutais desigualdades que perpetuam o grave quadro que demarca a questão social brasileira. As desigualdades estruturais, sobretudo as ligadas à distribuição de renda,  levam e, se não enfrentadas adequadamente, levarão, cada vez mais, a uma ampla gama de desigualdades mais específicas da contemporaneidade, como o caso da exclusão digital, que, inclusive, agrava outras desigualdades, à medida que se configura como um entrave para o acesso a serviços públicos e para a garantia de direitos, especialmente com a radicalização do projeto neoliberal, que, a serviço da superexploração capitalista, propõe-se a reduzir drasticamente os gastos com políticas de proteção social e deposita no indivíduo a suposta razão da precarização de suas condições de vida.

Como ponto primordial para os gestores e trabalhadores da Assistência Social, portanto, cabe, desde já, rechaçar o mito de que o “universo digital” é democrático, bem como se posicionar ativamente, com saberes e práticas, em prol de um projeto de sociedade mais amplo, que contemple a mobilização popular e o enfrentamento às mazelas estruturais.

Convém destacar que as classes D e E, como visto, as que mais enfrentam dificuldades de acesso às tecnologias digitais, representam as camadas da população mais atingidas pelas vulnerabilidades sociais, consistindo no público primordial da política de Assistência Social. Nesse sentido, caso a Assistência não esteja inserida em uma agenda ampla de enfrentamento aos determinantes estruturais das vulnerabilidades, inclusive as ligadas à falta de acesso a bens e serviços digitais, a tendência é a de acomodação passiva a esse contexto, acarretando em práticas assistencialistas ou, simplesmente, limitando de maneira marcante suas ações, no caso, sendo estas destinadas especialmente àqueles que possuem o acesso digital.

Quanto a isso, é importante pensar em alguns desdobramentos práticos emblemáticos no cotidiano da atuação na Assistência. Para tanto, há de se considerar a dimensão concreta que o próprio smartphone adquiriu na vida das pessoas, pois assim é possível compreender tanto sua relevância enquanto bem tangível quanto como meio de acesso a serviços. Ele não só é utilizado para acesso a serviços de grande relevância econômica e para o exercício da cidadania e garantia de direitos, como o “Meu INSS”, Caixa e todos os serviços articulados ao domínio gov.br, como também é, em si, um instrumento de sincronização, de autenticação e de verificação de identidade, a ser validada de maneiras diversas como envio de SMS, reconhecimento facial, redefinição de senhas e o próprio reconhecimento do nome e/ou ID do aparelho, entre outras. Assim, na prática, o smartphone passa também a ser um documento, em muitos casos, pessoal e intransferível.

As tentativas de acesso a determinados serviços, mesmo que por outras vias (como um computador), podem ser frustradas e literalmente travadas pela indisponibilidade do aparelho, acarretando desafios extras aos serviços de Assistência, raramente preparados para essas especificidades cada vez mais frequentes no suporte aos usuários no processo de obtenção de informações, documentos e acesso a outras políticas. Para além, há um problema ainda mais grave: considerando que o smartphone se tornou, portanto, um documento, há uma grande quantidade de usuários sem um documento cada vez mais requerido no cotidiano, o que abala sensivelmente o exercício da cidadania.

A situação ganha contornos ainda mais graves quando se considera a resolução da ANATEL nº 632 de 2014, que permite a suspensão parcial ou total dos serviços de telefonia móvel em situações onde o titular não disponha de créditos válidos. Apesar de não se tratar de uma resolução recente, o impacto negativo, já percebido há anos no cotidiano dos serviços em forma de constantes mudanças no número de telefone das pessoas atendidas (dificultando o contato e, por vezes, a adesão aos serviços), tende a ser potencializado diante do referido status de documento que cada vez mais os aparelhos celulares têm adquirido. Basta imaginar as dificuldades enfrentadas pelas pessoas que precisam frequentemente adquirir um novo chip em virtude do cancelamento do anterior.

O problema se mostra, portanto, anterior ao acesso à internet propriamente dito, remetendo às tecnologias digitais como um todo e, sobretudo, às precárias condições econômicas que impossibilitam que boa parte da população, sufocada pelo alto custo de vida e pelos baixos salários, tenham acesso a bens e serviços digitais de maneira consistente e adequada. O que resta para boa parte da população, quando muito, é tentar se adaptar precariamente a uma lógica perversa de um sistema que exige o que não é capaz de entregar.

As desigualdades no acesso a bens e serviços digitais abrem uma série de questionamentos possíveis, até mesmo pelas demandas mais ligadas a determinados grupos, como idosos, crianças e adolescentes frente a suas demandas escolares, população rural, população de rua, população negra e periférica, dentre outros que nos revelam que as vulnerabilidades, embora compartilhadas pela população pobre ou mesmo pela classe trabalhadora em sentido amplo, são heterogêneas e requerem, sim, esforços amplos, sem perder, contudo, o olhar atento às especificidades.

É necessário, portanto, que os profissionais que materializam, na ponta, a política de assistência social, através do contato direto com usuários dos serviços desenvolvam práticas de suporte à população em vulnerabilidade para a superação dos obstáculos possíveis no uso dessa tecnologia, mas é ainda mais importante a articulação com outras esferas das políticas públicas no sentido de se combater as perversidades da ordem econômica e social vigente, o que passa pelo reconhecimento do interesse público das tecnologias digitais, assim como outros bens de suma importância para a sobrevivência e para a qualidade de vida, cujo acesso deve superar a mercantilização e assim ser garantido à coletividade.

A elevação de renda da classe trabalhadora é fundamental, mas também há de se considerar a adoção de diversas outras estratégias, como exemplo a ampliação de zonas de wi-fi públicas e de qualidade. A Assistência Social, embora não seja incumbida de executar políticas em todas as dimensões requeridas para o enfrentamento do problema, pode e deve apontar essas demandas e atuar conjuntamente, uma vez que estas incidem diretamente em sua capacidade de ofertar proteção social.

Até o momento, as ondas de telefonia, internet e outras tecnologias digitais, dispersas no ar e invisíveis a olho nu, carregam consigo uma lamentável invisibilização das demandas das camadas mais vulneráveis da população e uma ausência de políticas direcionadas. Cabe à Assistência, em conjunto com outras políticas e com os movimentos da classe trabalhadora organizada, tornar essas demandas visíveis e efetivamente considerá-las no processo de formulação e de direcionamento de ações públicas nesse âmbito. 

¹https://www.impacto.blog.br/site/wpcontent/uploads/2021/05/Auxilio_InclusaoDigital_VersaoFinal_2505.pdf

Vinicius Saldanha de Jesus é psicólogo do SUAS, mestre em Desenvolvimento Econômico na área de Economia Social e do Trabalho (UNICAMP) e representante sindical do Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo.

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