13mai2024 Por Norian Segatto
Linha do tempo
A luta para que o governo deixe de investir verba pública em comunidades terapêuticas se acentuou após o governo Bolsonaro promover essas entidades a guardiões da abstinência. Logo no início de seu governo, em abril de 2019, foi assinado o decreto 9.761/2019, que versava sobre a “nova política nacional de drogas”, preconizando, entre seus principais aspectos, a criminalização de todas as drogas (ilícitas) e a abstinência como fator primordial de atendimento a usuários e dependentes.
Esse decreto abriu os cofres do governo para aumentar exponencialmente o financiamento às chamadas Comunidades Terapêuticas (CTs), grande parte delas ligada a seitas religiosas, que atuam no tripé “abstinência”, “trabalho forçado” e “conversão religiosa”.
Em julho, ainda em 2019 (primeiro ano do desgoverno neofascista), a lei 13.840/2019 estabeleceu novas bases para “o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, definir as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e tratar do financiamento das políticas sobre drogas”.
Com essa base jurídica, o financiamento às CTs passou de R$ 39,2 milhões, em 2018, para 105,2 milhões em 2020, conforme dados do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). “Dos R$ 103 milhões alocados na ação “Redes de Cuidados” em 2019, R$ 94 milhões foram pagos em serviços de acolhimento residencial, integralmente despendidos em contratos com terceiros. No entanto, a partir da execução orçamentária, não é possível encontrar o valor preciso repassado às CTs, apenas dimensioná-lo”, afirma o documento.
Um dos maiores escoadouros de recursos é via emendas parlamentares. Segundo o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, nos últimos cinco anos houve um aumento de 182% nas emendas parlamentares destinadas a essas instituições. Em 2020, foram destinados R$ 27,8 milhões; em 2021, o montante saltou para R$ 40,5 milhões; em 2022, R$ 36,4 milhões; em 2023, R$ 64,4 milhões. Em uma audiência na Câmara dos Deputados, em maio de 2023, o então representante do Ministério da Saúde, Marcelo Kimati afirmou: “Ao longo destes últimos cinco anos não tivemos melhora de nenhum indicador na área de saúde mental. Durante esse período, houve aumento do uso de álcool e de drogas e de taxas de suicídio”. Kimati foi entrevistado pelo PodSin e se aprofundou mais sobre esse tema.
Um pedido de informação pública solicitado em abril deste ano esclarece com mais detalhes os caminhos dessas verbas. Clique aqui para acessar.
Se existe um entendimento entre especialistas e boa parte da sociedade sobre o fim do financiamento público para as CTs, o lobby dessas Comunidades é bastante ostensivo no meio político e conta com o apoio de diversos parlamentares, a maioria ligada à bancada evangélica, e com uma frente parlamentar própria para defender seus interesses, afinal, estamos falando em centenas de milhões de reais que saem dos cofres públicos para um serviço sem qualquer fiscalização ou controle social e cujos preceitos e metodologia não na maioria das vezes alinhados à política universal do SUS.
Resolução CNAS
Em fevereiro deste ano, o Conselho Nacional de Saúde emitiu a Resolução 002/2024 em que “recomenda a suspensão imediata do Edital de Credenciamento nº 008/2023, com a consequente desabilitação das entidades nele referidas”.
Em abril deste ano, o Conselho Nacional de Assistência Social (ligado ao Ministério do Desenvolvimento Social) publicou a resolução 151 que afirma:
Parágrafo único. Devem ser inscritas nos conselhos assistência social apenas as entidades e organizações de assistência social com preponderância nas ofertas ao SUAS de serviços, programas, projetos ou ofertas socioassistenciais, que se enquadrem nos critérios estabelecidos pelas normas a que se refere este artigo.
Art. 4º As comunidades terapêuticas e/ou entidades de cuidado, prevenção, apoio, de mútua ajuda, atendimento psicossocial e ressocialização de dependentes do álcool e de outras drogas e seus familiares, por não atenderem ao disposto nos arts. 1º, 2º e 3º, não integram o SUAS e não devem ser inscritas nos conselhos de assistência social dos Municípios e Distrito Federal nem ter CNEAS.
A Resolução estabeleceu um prazo de 90 dias para o fim do financiamento público, medida que foi fortemente atacada por entidades evangélicas e alguns portais de notícias, que usaram da famosa manipulação de manchete para induzir que o governo Lula cortava verbas para atendimento a dependentes. Entre as diversas entidades que sentiram o golpe da resolução está a Cruz Azul, que emitiu nota a esse respeito.
Pressão e recuo
Não se sabe ao certo o nível de pressão sofrido pelo governo, mas apenas uma semana a publicação da Resolução do CNAS, o Ministério do Desenvolvimento emitiu nota de esclarecimento, que na prática invalida e invalida a Resolução 151. Diz a nota:
I. Qualquer organização da sociedade civil que cumpra as normativas do SUAS quanto às ofertas socioassistenciais realizadas, poderá receber recursos públicos via Fundo de Assistência Social. Os repasses fundo a fundo no âmbito do SUAS destinam-se exclusivamente para ofertas socioassistenciais tipificadas na Resolução CNAS nº 109/2009.
II. Os financiamentos às comunidades terapêuticas e/ou entidades de cuidado, prevenção, apoio, de mútua ajuda, atendimento psicossocial e ressocialização de dependentes do álcool e de outras drogas e seus familiares realizados pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS) não são via Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS). Portanto, o conteúdo da Resolução CNAS nº 151/2024 não afeta termos de colaboração, convênios e contratos.
III. A Resolução CNAS nº 151/2024 não impede a inscrição de serviços, programas e projetos socioassistenciais nos Conselhos, que deve ser realizada conforme a Resolução CNAS nº 14/2014. Assim como no Cadastro Nacional de Entidades de Assistência Social (CNEAS), que nesses casos devem cadastrar apenas os serviços, programas e projetos socioassistenciais ofertados pelas comunidades terapêuticas.
Dia Nacional de luta antimanicomial
Mesmo com essa recomendação explícita do CNAS, com a análise de especialistas, com as diversas denúncias de maus tratos já publicadas pela imprensa, com a posição do CNS, do CFP e diversas outras entidades e órgãos é pouco provável que algo de efetivo aconteça no curto prazo, mas, como tantas outras, esse é um luta de longa duração, que requer um diálogo constante com a sociedade.
Este ano, nas comemorações do dia nacional de luta antimanicomial, um dos motes é justamente o fim do financiamento público para CTs e o aumento do financiamento para RAPs e outros equipamentos públicos.
Em São Paulo, a data será celebrada dia 17 de maio (sexta-feira), a partir das 10 horas, na Avenida Paulista, com microfone aberto e marcha pela avenida. A Frente Estadual de Luta Antimanicomial, que organiza o ato, convida a tod_s para que se engajem nessa luta que é por dignidade humana, cidadania, cuidado em liberdade e democracia no seu sentido mais amplo.