O sociólogo Emir Sader abriu o debate “Os desafios da construção da democracia na América Latina – reflexões a partir da Psicologia”, na manhã desta quarta-feira, 27 de janeiro, no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, com a avaliação de que uma das características mais marcantes dos governos progressistas que foram eleitos nos países da América Latina, na última década, é o privilégio à integração regional, em detrimento aos tratados de livre comércio com os Estados Unidos, priorizados pelos governos anteriores, de linha neoliberal.
Para ele, a integração regional e as e relações entre países do hemisfério sul foram centrais para que essas nações tenham conseguido sair da crise econômica antes mesmo dos países ricos. “A crise começa no coração do capitalismo, nos EUA, e ele não se recupera. O sul do mundo se recuperou antes pela capacidade de intercambiar entre si, e de interação com os vizinhos”. Outros motivos para a recuperação, segundo Sader, foram a existência de mercado interno de consumo popular e da manutenção, pelos governos, das políticas sociais. Em crises anteriores, a solução adotada havia sido o incentivo ao capital especulativo, aumentando juros para evitar a saída de investidores, em detrimento de ações voltadas para a população.
Na avaliação de Sader, a maior das batalhas de valores no Brasil e na América Latina hoje é a luta contra o egoísmo consumista. “A pior coisa do neoliberalismo em termos de psicólogos é o individualismo”, afirmou.
Ele identifica inúmeras experiências que vão contra essa lógica na América Latina, como a erradicação do analfabetismo na Bolívia e na Venezuela, com o método de alfabetização cubano; os programas como a Operación Milagros, que realizou a recuperação da capacidade de visão de dois milhões de latino-americanos pobres, ou a formação de médicos provenientes de classes populares de todos os países da América Latina em Cuba. O sociólogo encontra, nestas ações conjuntas entre os países, um perfil de solidariedade muito distinto da lógica individualista que marca as sociedades contemporâneas. E questiona o silêncio dos meios de comunicação de massa sobre essas experiências.
“Tem-se pensado a realidade na dinâmica público e privado, mas a polarização real é entre as esferas públicas, de direitos, e mercantis, das mercadorias. A luta é por desmercantilizar a sociedade: tirar da esfera do mercado, do consumo, para a esfera do direito as possibilidades de ler, enxergar, morar”, disse Sader ao final de sua palestra.
A fala da psicóloga uruguaia Carolina Moll, tesoureira da União Latino-Americana de Entidades de Psicologia (Ulapsi), fez transparecer como o debate sobre democracia na América Latina é, ainda, marcado pelo rompimento dos regimes democráticos nas décadas de 70 e 80, período dos governos militares. Moll falou sobre os impactos do regime militar sobre os cursos de Psicologia no Uruguai. Naquele período, a formação era voltada para teorias de visão biológica, valorização de estatísticas, entendimento dos processos cognitivos. Com a redemocratização e o retorno dos professores exilados, os cursos voltaram a abordar outras visões da Psicologia, com perspectivas sociais e comunitárias.
Após traçar este panorama, a psicóloga elencou desafios atuais da Psicologia, ainda entoados com o recente retorno a essas preocupações: “A Psicologia tem como desafio o apoio ao desenvolvimento dos cidadãos, à possibilidade de protagonismo de cada homem e mulher em suas conquistas e desafios”, disse. O suporte à organização das comunidades, proporcionando espaços de reflexão conjunta, foi outro desafio ressaltado por Moll, que avalia ser central o trabalho com comunidades do campo, focado no desenvolvimento rural, em condições dignas de vida no interior dos países, em processos de descentralização que garantam universidades nas áreas rurais e a permanência no campo “com produção de conhecimento e desenvolvimento de tecnologia em lugares onde a alternativa seria abandonar estudos ou ir para a capital.”
A psicóloga brasileira Ana Bock traçou o histórico da institucionalização da profissão no país, pouco antes da instalação do regime militar, e a criação dos Conselhos de Psicologia, já sob a ditadura e com formato autoritário, que depois foram sendo reformados por meio da atuação da categoria e das diversas organizações profissionais, ou em espaços como os Congressos Nacionais da Psicologia (CNPs), que aglutinaram demandas por democratização das entidades representativas da categoria.
Paralelamente, os profissionais, que foram formados em escolas que buscavam compreender indivíduos universais, sem ligação com suas culturas e sociedades, ao atuar profissionalmente no contexto brasileiro foram, aos poucos, sentindo necessidade de outras perspectivas para embasar seu trabalho e suas reflexões. “Chegamos, assim, à ideia de compromisso social da Psicologia. Percebemos que estávamos esquecendo um pedaço, que talvez fosse importante, de nos voltar para a sociedade, cultura, repensar o sujeito. Olhava-se ‘como a sociedade influencia o sujeito’ e passamos a perceber não só a influëncia, mas como a sociedade constitui o sujeito”, afirmou. “As reflexões levam à dimensão subjetiva da desigualdade social, e ao abando no da ideia de um sujeito universal. A desigualdade social também produz desigualdade psicológica”, disse Bock.