São Paulo – Com um histórico de abandono, falta de conhecimento ou prostituição, pelo menos cinco mães dependentes químicas, em especial de crack, são encaminhadas por semana para Justiça da capital paulista para processos de acolhida, adoção ou transferência de guarda de seus bebês. Entre janeiro e setembro, seis das 11 Varas da Infância da cidade somaram 210 ações judiciais envolvendo as chamdas “mães do crack”.
Os dados são de um levantamento inédito da Coordenadoria da Infância e da Juventude. Os resultados, no entanto, ainda são parciais, uma vez que apenas as varas de Santo Amaro, Lapa, São Miguel Paulista, Penha, Ipiranga e Tatuapé enviaram dados sobre os casos atendidos. Ficaram de fora Santana, Jabaquara, Itaquera, Pinheiros e Centro, onde está localizada a região apelidada de cracolândia.
“São pessoas dependentes químicas, sem vínculo familiar e em situação de rua, lidando com toda a promiscuidade desse ambiente”, explica o juiz da Vara da Infância de Santo Amaro, Iasin Issa Ahmed, responsável pela região que concentra a maioria dos casos: 75 acolhimentos de bebês e um encaminhamento para adoção. “O que nós observamos é que de dois anos para cá houve um aumento grande desse número de casos.”
Uma pesquisa lançada em setembro pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligada ao Ministério da Saúde, mostrou que 370 mil brasileiros de todas as idades usaram regularmente crack nas capitais do país por pelo menos seis meses em 2012, o que representa 0,8% da população dessas cidades. Antes disso, em março, o Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo estimou que pelo menos 1,2 mil crianças que vivem nas ruas da cidade são viciadas em crack.
“Na maioria dos casos não há o reconhecimento da paternidade. Falta, inclusive, consciência da própria gestação ou da relação entre sexo e gravidez. Isso é tão perigoso quanto a falta de pré-natal ou do uso de drogas na gestação, que é comum”, continua Ahmed.
Grande parte dos partos de gestantes usuárias de drogas de São Paulo é encaminhada para a Maternidade Leonor Mendes de Barros, na zona leste. Só entre janeiro e setembro foram 62 casos, segundo o serviço de assistência social do hospital. No ano passado foram registrados 71, dos quais 50 foram apresentados às varas da infância, por se tratarem de dependentes crônicas ou em situação de rua.
O primeiro desafio do serviço social é tentar descobrir se a mãe é uma usuária esporádica ou crônica para prever os riscos para o bebê. “Se ela usou drogas durante a gestação em alguns casos a criança pode ter crises de abstinência e não necessariamente logo após o parto”, exemplifica a co-gestora da assistência social na Maternidade Leonor Mendes de Barros, Tânia Lucena.
“Os casos variam muito. Algumas vêm ainda sob o efeito das drogas, outras são recolhidas pelo Samu em trabalho de parto em via pública e outras já tiveram o bebê na rua”, continua. “Se é uma pessoa em situação crônica, ela já perdeu vínculos e a noção de autocuidado fica prejudicada. A prioridade é usar a droga. Neste perfil temos pessoas que se prostituem e que já vieram para cá duas ou três vezes para ter bebês.”
Encaminhamento
Em casos de dependência, nos quais a mãe não tem condições de permanecer com a criança, o encaminhamento judicial do bebê começa já no hospital: as assistentes sociais tentam levantar informações sobre as mães, que muitas vezes ainda estão sob efeito das drogas e sem nenhum documento. A conversa, então, se transforma no desafio de tentar filtrar as informações verdadeiras e falsas.
“A primeira busca é por um familiar, como irmã, mãe ou prima, que possa ficar com a guarda do bebê. Por sorte, muitas famílias aceitam”, conta o juiz da vara de Santo Amaro. Pelo levantamento da Coordenadoria da Infância, houve 38 processos bem sucedidos de encaminhamento das crianças para a família extensa em São Paulo neste ano, 18,1% do total.
Quando não é encontrado um nenhum familiar ou quando ninguém se voluntaria para ficar com as crianças, muitas vezes por já ter a guarda de outros filhos, o caso é encaminhado para as varas da infância e a mãe é instruída a procurar a Justiça, uma vez que não poderá sair com a criança do hospital.
“Algumas não voltam e outras entregam a criança para a adoção. Caso elas queiram brigar pela guarda a criança vai para um abrigo e iniciamos um processo, que pode demorar mais de um ano”, explica o juiz. Segundo o levantamento da Coordenadoria da Infância, 26 crianças filhas de dependentes químicas foram encaminhadas para adoção.
“Cobramos do poder público a obrigatoriedade de fotografar mães que vêm sem documento para evitar, por exemplo, que ela se identifique como uma outra pessoa interessada em ficar com o bebê, sem passar pelo processo judicial, e também para a memória da criança, que poderá saber como era sua mãe.”
Poder público
Se a situação é alarmante e o número de casos cresce, as ações do poder público parecem não dar conta de reduzir o consumo de crack na capital paulista. Em uma caminhada na região da cracolândia, na última quarta-feira (2), a RBA identificou um grupo de pelo menos 300 dependentes de crack, entre adultos e crianças.
A primeira estratégia para reverter o problema do governo do estado, apoiado pelo então prefeito Gilberto Kassab (PSD), foi a ação Centro Legal, que lançou mão de uma série de operações repressivas da Polícia Militar para combater o tráfico e o consumo de drogas na região central da cidade, iniciada em janeiro do ano passado.
Por conta da violência da operação, o Ministério Público (MP) ajuizou uma ação civil pública contra o governo, na qual pede o mínimo de R$ 40 milhões de indenização, por danos morais individuais e coletivos.
Um ano depois, o governo do estado anunciou o polêmico projeto de internações compulsórias de dependentes de álcool e drogas de São Paulo, porém, a maioria das internações foram voluntárias. Movimentos sociais criticaram o modelo do programa e temeram ações truculentas da polícia. Em abril, o Ministério Público enviou entrou com uma ação civil pública contra o governo estadual para impedir que leitos destinados a doentes mentais fossem usados para tratar dependentes químicos.
Atualmente, as internações e o trabalho de acolhida fazem parte do Programa Recomeço. A RBA solicitou informações sobre a quantidade de atendimentos feitos pelo projeto, mas não teve resposta até o fechamento desta reportagem.
A prefeitura informou, em nota, que ampliou de quatro para 16 as equipes de Programa Consultório na Rua, compostas por médicos, enfermeiros e agentes de apoio, que trabalham acolhendo e encaminhando os dependentes para tratamento, em especial na região central da cidade.
A Secretaria Municipal de Saúde informou que também possui o Centro Integrado de Reinserção Social “De Braços Abertos”, na cracolândia, que oferece oficinas e grupos de caráter terapêutico, com participação de organizações não governamentais.
Segundo a nota, o tratamento pela prefeitura se dá por meio dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) “e não no modelo hospitalar, que prioriza a internação psiquiátrica para o tratamento destes usuários. As internações específicas em saúde mental nos hospitais ocorrem quando esgotadas todas as possibilidades terapêuticas dos CAPS”.
As equipes dos 80 CAPS da cidade realizam, em média, 320 visitas domiciliares por mês aos dependentes químicos. “A Secretaria Municipal de Saúde dispõe de 449 vagas para internação de dependentes químicos. São 289 leitos em hospital-geral (193 municipais e 96 vagas estadual), além de outras 64 vagas em hospitais psiquiátricos e 162 em Comunidades Terapêuticas. De 3 de janeiro até o momento, 1.465 pessoas foram internadas para tratamento contra a dependência.”