São Paulo – Além do desejo de mais diálogo, especialistas, militantes dos movimentos sociais e usuários do sistema público querem que a presidenta reeleita Dilma Rousseff (PT) priorize o fortalecimento do Sistema Único de Saúde (SUS). Além de senso comum inconteste, a ampliação e a melhora dos serviços públicos de saúde compõem o tema considerado da maior importância dentro da gestão pública para 87% dos brasileiros, conforme pesquisa Datafolha divulgada durante a campanha eleitoral. E para 57%, deve ser a prioridade do governo federal.
“No Brasil, o sistema responde pelo atendimento de vítimas de violência até doenças crônicas, passando por epidemias. É o que chamamos de tripla carga de doenças. Para combatê-las, o país precisa de um sistema inteiro de saúde e não de um jogo de montar no qual você vai colocando peças aos poucos”, avalia a professora do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ) Ligia Bahia. “O que me preocupa é o fato de o fortalecimento do SUS não ter sido sequer mencionado no debate eleitoral.”
Somente em 2012, o SUS realizou 3,9 bilhões de procedimentos em todo o país, sendo 11 milhões de internações, 3,3 milhões de cirurgias, 2 milhões em obstetrícia e 6 milhões de internações clínicas. Foram realizados 887 milhões de exames, incluindo os bioquímicos e os de imagem. Ações de promoção e prevenção, 583 milhões. Apesar do gigantismo, os serviços são mal avaliados: para 93% dos brasileiros, as saúdes pública e privada são péssimas, ruins ou regulares. O SUS, em particular, deixou a desejar para 87% dos entrevistados.
A ampliação do programa Mais Médicos, que contratou profissionais para a atenção básica, a maioria deles estrangeiros, foi a principal promessa de Dilma para o setor – agora, com a oferta de atendimento em especialidades no chamado Mais Especialidades. “Queremos partir para a criação do serviço que garanta agilidade no atendimento do médico especialista, aquele que vai cuidar de um problema de coração, aquele ortopedista, e ao mesmo tempo garantir acesso a exames laboratoriais”, afirmou Dilma em entrevista durante a campanha eleitoral.
O coordenador do Fórum Popular de Saúde de São Paulo, Paulo Spina, observa que o anúncio do Mais Especialidades não contempla todas as demandas da saúde e que não se sabe, na prática, como será implementado. “Houve promessas de mudanças, com poucas ideias novas, porém sem esquematizar quais seriam elas. E o fundamental é aumentar o financiamento”, avalia.
Uma das grandes preocupações dos especialistas é combater o que eles chamam de privatização do sistema. Para isso, defendem o fim de incentivos e benefícios governamentais aos planos de saúde privados. No Brasil há 912 operadoras de planos de saúde, sendo que as 25 maiores têm aproximadamente 50% do mercado. O segmento contava, até dezembro de 2013, com 50,7 milhões de conveniados, o que garantiu ao setor faturamento de R$ 108 bilhões naquele ano.
De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em 2011 a renúncia fiscal do governo foi de R$ 15,807 bilhões, equivalente a 22,5% de todo o gasto federal em saúde. No mesmo período, segundo o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde, o governo gastou o equivalente a 5% do orçamento do Ministério da Saúde com planos para os funcionários e seus dependentes.
Spina avisa que os movimentos de saúde não vão pensar duas vezes para ir às ruas caso a presidenta nada mudar quanto a isso. “Estamos vendo com muita preocupação a falta de um programa específico de saúde. Se as propostas continuarem levando à privatização e precarização do trabalho ou de transferência de recursos públicos para entidades privadas, estamos dispostos a ir para a rua e lutar”, diz.
Para Lígia, o papel da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) pode até ser reconfigurado se a opção do governo for pelo fortalecimento do sistema público de fato. “Se tivermos um SUS forte, a ANS ficará pequena. Ao contrário, se a saúde for capturada pelas empresas, o SUS será enfraquecido”, avalia.
Mais Médicos
Política mais audaciosa do setor no primeiro mandato, o Mais Médicos foi ferozmente atacado desde sua criação pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), Associação Médica Brasileira (AMB) e Federação Nacional dos Médicos (Fenam), entre outras entidades. As corporações contestam principalmente a vinda dos de Cuba e a dispensa da revalidação dos diplomas dos participantes.
Com a efetivação da medida, o embate se acirrou e as entidades de classe se posicionaram contra a presidenta, chegando a manifestar apoio à candidatura do tucano Aécio Neves. Com Dilma no segundo turno, as investidas se acirraram.
Uma comunidade no Facebook chamada “Dignidade Médica”, que reúne quase 100 mil usuários que se declaram profissionais da classe médica, foi palco de uma guerra contra a presidenta. Entre as postagens, pregações como “castrações químicas” de nordestinos e de profissionais com menor nível hierárquico, como recepcionistas de consultório e enfermeiras, e que propunham um “holocausto” aos eleitores da petista.
Dois dias após a reeleição de Dilma, as entidades, que não atenderam à reportagem da RBA, divulgaram nota afirmando que o diálogo proposto pela presidenta deveria partir de reflexões sugeridas em um manifesto com mais de 40 exigências, entre elas o fim do Mais Médicos. “Claro que as associações médicas têm a liberdade de se posicionar como decidirem, mas vemos com bastante crítica esse tipo de ação”, afirma Spina.
Representante dos usuários do SUS, a presidenta do Conselho Nacional de Saúde, Maria do Socorro de Souza, reitera seu apoio ao programa aprovado pela população e que passou pelo Congresso Nacional. “Tenho três netas em Valparaíso de Goiás, e toda minha família passou a ter atendimento regular em atenção básica à saúde com a chegada de 28 médicos cubanos ao município”, diz.
Para a conselheira, é lamentável que as entidades médicas virem as costas às necessidades da população, sobretudo a mais pobre, “numa demonstração de corporativismo descompromissado”. Conforme destaca, o país gasta cerca de R$ 1 milhão a cada médico formado em um curso público. “Eles deveriam também fazer a crítica ao setor privado, que explora os médicos e nem sempre oferecem tudo o que eles cobram do governo”, diz.
Nem todas as entidades médicas, porém, querem o fim do programa federal. A Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade (SBMFC) elogia a iniciativa por enfrentar a falta de médicos onde eles são mais necessários e por mexer na grade curricular dos cursos de Medicina. A entidade espera que o governo aprimore a política em curto prazo.
Entre as correções propostas estão medidas para levar e fixar mais profissionais no interior do país. “Infelizmente, as regiões mais distantes ainda não conseguiram suprir plenamente a falta de médicos, como as periferias dos grandes centros e regiões metropolitanas. Talvez isso seja corrigido com uma política salarial, em vez das bolsas”, opina o presidente da SBMFC, Thiago Trindade, professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Outras mudanças que Trindade considera bem-vindas para o programa emergencial são ajustes no sistema de revalidação dos diplomas dos médicos formados no exterior, sem as distorções que podem induzir a uma reprovação de maneira equivocada, para que a população seja atendida por profissionais que comprovem estar adequadamente preparados para atender às suas necessidades. E que a legislação seja modificada para aumentar as vagas dessa área da medicina nos programas de residência e os incentivos para atrair mais especialistas em medicina da família.
De acordo com o professor, cerca de 10% dos 40 mil médicos que atuam hoje na atenção são especialistas. Disso depende a qualificação do atendimento, como fizeram os países que estão na vanguarda da atenção primária – aquela que vai prevenir doenças ou tratá-las antes que se compliquem e passem a exigir sérias intervenções, sobrecarregar os hospitais e impactar os cofres do SUS.
Como os demais militantes em prol da saúde pública, Trindade torce pela qualificação do programa. Mas também sente falta de uma sinalização mais clara dos rumos que a presidenta dará ao SUS. “Até agora pouco foi dito, principalmente sobre financiamento ou um um possível apoio de Dilma ao projeto de lei de iniciativa popular que destina 10% das receitas brutas da União para a Saúde e que está parado no Congresso.”