Equipe participa de estudos trabalhando técnicas de entrevista e reportagem com moradores de rua
“A população de rua precisa ser ouvida. Se a gente ouvir o que ela quer, resolve o problema dela”, recomenda Paulo César de Paula, com a experiência de anos como morador de rua e militante de movimentos sociais. Desde maio, é isso o que Paulo tem feito: ouvir. Ao lado de outros nove pesquisadores, Paulo conversa com os habitantes das calçadas, vielas, praças, tendas, albergues, malocas, centros de acolhida e bueiros – todos os locais da cidade de São Paulo que servem como casa para os que não têm casa.
Outro dos pesquisadores, Darcy da Silva Costa, diz: “A gente não está indo lá para contar as pessoas, como se faz com gado. Estamos indo lá para saber um pouco do outro”. Um outro que também é um eu, já que os dez pesquisadores envolvidos no projeto são todos pessoas que vivem ou já viveram nas ruas. O trabalho deles deles é o coração da Pesquisa Social Participativa Pop Rua, que está sendo realizada pela Sur, empresa de psicanálise, clínica e intervenção social, com financiamento da Secretaria Municipal de Direitos Humanos.
Os dez pesquisadores sociais recebem um salário mensal líquido de R$ 500, mais vale-alimentação e transporte, ao longo de oito meses. “Essa pesquisa melhorou minha autoestima, e isso é importante”, afirma Paulo. Também fazem parte do projeto quatro psicólogos, quatro estudantes de psicologia e a equipe da Ponte, contratada pela Sur para trabalhar técnicas de entrevista e reportagem com os pesquisadores, por R$ 2 mil mensais.
“Queremos levantar as situações de vida nas ruas usando uma metodologia em que o pesquisador é alguém que vive a situação de rua”, explica a psicóloga Emilia Estivalet Broide, da Sur, técnica sênior da pesquisa. As informações do projeto serão usadas para subsidiar a criação de um Plano Municipal para a População em Situação de Rua, a ser elaborado pelo Comitê Intersetorial da Política Municipal para a População em Situação de Rua, o Comitê Pop Rua, espaço de discussões que reúne representantes do governo e da sociedade civil.
“Te sentam o couro”
A pesquisa teve início com um grupo de trabalho montado pela Sur, junto com o Comitê Pop Rua, que fez a seleção dos pesquisadores sociais e montou um mapa com as áreas da cidade frequentadas por moradores de rua. Em seguida, os pesquisadores escolhidos passam a ir para cada um dos locais listados, onde entrevistam tanto os habitantes das ruas quanto as outras pessoas que fazem parte do mesmo universo, incluindo profissionais de albergues e centros de acolhida e representantes do Estado. O secretário de Direitos Humanos, Eduardo Suplicy, foi um dos entrevistados pelos pesquisadores/moradores de rua.
“Pesquisar a rua é como descer num elevador de vidro que mostra um outro mundo, escondido embaixo da cidade que conhecemos”, afirma Jorge Broide, da Sur, coordenador da pesquisa. À medida que a pesquisa avança, vão aparecendo as realidades de seres e acontecimentos que, mesmo vivendo no mesmo espaço dos outros paulistanos, são tão invisíveis que parecem se ocultar sob a pele do mundo. Começa a aparecer uma divisão territorial própria: aqui uma praça onde os moradores de rua podem descansar e receber doações, ali as “bocas de rango” onde conseguem comida, mais adiante um outro onde correm o risco de ser atacados.
A submissão forçada das mulheres, que muitas vezes precisam se juntar com um homem para não serem devoradas pela violência das ruas. As regras de convivência das malocas, em que as infrações podem ser punidas com penas que vão de uma conversa dura ao banimento. E também aparece a inadequação das ferramentas do poder público para lidar com esse universo paralelo.
Inadequação que mostra sua cara, por exemplo, numa noite gelada de junho em que os pesquisadores sociais, acompanhados dos psicólogos, são abordados por um rapaz. Em tom angustiado, ele conta que está buscando um lugar, qualquer lugar, para dormir. Um dos pesquisadores vai a um orelhão e telefona para a Cape (Coordenadoria de Atendimento Permanente e de Emergência) da Prefeitura pedindo uma van para levar o rapaz a um albergue. Passa 40 minutos no telefone, sem conseguir uma resposta. Do outro lado da linha, a atendente diz não saber quando poderá enviar a van, faz várias perguntas e, por fim, alega não conhecer o endereço mencionado — o Largo São Francisco, um dos mais conhecidos de São Paulo. A solução só chega depois que uma viatura da Guarda Civil Metropolitana (GCM) identifica os pesquisadores como “a comitiva dos direitos humanos do Suplicy” e resolve ajudar fazendo uma solicitação ao Cape via rádio. Só então a van aparece e leva o rapaz para um teto longe do frio.
Ao ver os GCMs, um outro morador de rua aproveita a presença dos pesquisadores para acusar os guardas de praticar todo tipo de violência. É aí que um dos pesquisadores sociais, Diego Martim, resolve intervir. Leva o homem para longe dos uniformes azuis e diz para ele evitar fazer qualquer denúncia na frente dos guardas. “Os caras não vão fazer nada na nossa frente, mas, depois que a gente for embora, te pegam sozinho e te sentam o couro”. Tem que coisa que só quem é sabe como é.
O método de entender a rua por meio de quem vive a rua já havia sido utilizado numa outra pesquisa da Sur, usada na construção do Plano de Enfrentamento à Situação de Rua de Porto Alegre (RS), em 2011. Uma das técnicas utilizadas na pesquisa prevê o uso de cronistas, função desempenhada pelos quatro estudantes de psicologia. Ser um um cronista é observar todos os encontros com os moradores de rua sem dizer nada, mas vendo e ouvindo tudo, e produzir relatos detalhados que buscam desvendar inclusive questões que se escondem atrás das falas.
O plano inicial era deixar a palavra escrita a cargo dos cronistas e receber os dados das entrevistas nas ruas através apenas dos relatos orais dos pesquisadores. Mas a equipe resolveu apostar também nos textos dos pesquisadores sociais, para ver o que apareceria. O primeiro passo foi realizar encontros em torno da leitura de textos de Plínio Marcos, Manoel de Barros, Eliane Brum, Drauzio Varella, Marcos Faerman, Fernando Sabino e Manoel de Barros, de canções dos Racionais e de literatura de cordel, durante uma oficina realizada pela Ponte. Só para ver o que ia acontecer. Durante a leitura, os pesquisadores se emocionaram. Vindo de Santos, Luiz Carlos Ceccopiere contou que havia conhecido Plínio Marcos nas quebradas da região do porto. Diego se surpreendeu ao conhecer a narrativa em cordel. “Como ele é carinhoso com as palavras”, disse. Contou que tinha vontade de escrever daquele jeito.
Em prosa ou verso, escritas ou de boca, as informações trazidas pelos pesquisadores são destrinchadas em três encontros semanais, dois com os psicólogos do projeto e um com os jornalistas da Ponte. Um dos encontros é chamado de grupo terapêutico, porque serve para dar suporte psíquico ao trabalho: é a hora dos pesquisadores botarem para fora seus demônios. Nesse jogo de espelhos de uma pesquisa em que investigação e investigado são tão próximos, os conteúdos do grupo terapêutico também contribuem para a pesquisa, pois ajudam a entender os dilemas da população de rua.
O coordenador Jorge Broide afirma esperar que os moradores de rua recrutados para a pesquisa possam ser aproveitados em outros trabalhos semelhantes, já que, após tanto treinamento e tantas práticas, todos acabaram adquirindo uma boa bagagem como pesquisadores. E sabem disso. Outro dia, um deles, Maurício Carlos Tavares, até inventou de corrigir uma repórter de tevê que, postada na calçada, pés no chão e microfone na mão, colhia depoimentos dos moradores de rua. “Para falar com povo da rua, você precisa sentar com eles”, Maurício disse para a repórter. Tem coisa que só quem é sabe como é.