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Bancados por autoridades e políticos, os discursos de ódio prosperam

O caos carcerário levanta o debate sobre os limites nos debates

Na República de Platão, Polemarco, em diálogo com Sócrates, busca no senso comum seu conceito de justiça. Para ele, a definição passa pela maniqueísta formulação de “devolver o que se deve, sendo o bem ao amigo e o mal ao inimigo”.

No Brasil que naturaliza a barbárie, a definição do personagem platônico impõe-se em discursos de políticos, promotores e juízes. A repercussão das matanças recentes nas prisões brasileiras confirma a preferência da atual classe política pelo “olho por olho, dente por dente” de Polemarco.

A morte de mais de 90 presos em Manaus e Roraima mereceu reprováveis comentários de autoridades. Em uma entrevista à Rádio CBN, o governador amazonense, José Melo, afirmou que não “havia nenhum santo” entre os mortos no Complexo Penitenciário Anísio Jobim. Na sexta-feira 6, Bruno Júlio, agora ex-secretário de Juventude de Michel Temer, não se satisfez com o número de decapitações e mutilações.

“Tinha era que matar mais, tinha que fazer uma chacina por dia.” O deputado federal Major Olímpio superou-se: publicou em sua rede social um “placar dos presídios”, contrapondo as 56 mortes em Manaus às mais de 30 em Roraima. “Vamos lá, Bangu! Vocês podem fazer melhor!”, emendou, ao incentivar os presos da penitenciária carioca a reproduzir as matanças ocorridas na Região Norte.

Em um país no qual 40% da massa carcerária é composta de detentos provisórios e cerca de metade deles, de acordo com pesquisas, costuma ser inocentada por tribunais, o desprezo generalizado pelos presos impressiona. Os discursos de ódio, presentes na mídia, nas redes sociais e nos argumentos de autoridades, levantam o debate sobre os limites entre a liberdade de expressão e a apologia e a incitação ao crime.

Embora muitos integrantes do Judiciário reproduzam discursos de ódio, ao menos o Supremo Tribunal Federal parece estar menos disposto a tolerar a agressividade de políticos. Em junho do ano passado, o deputado Jair Bolsonaro, do PSC, tornou-se réu por incitar o crime de estupro. Em 2014, Bolsonaro atacou Maria do Rosário, do PT, ao afirmar que só não estupraria a deputada por ela não merecer.

O fato de a Corte ter aceito a queixa-crime contra o parlamentar representou uma nova interpretação sobre a imunidade parlamentar, que garante ampla liberdade, autonomia e independência a deputados e senadores no exercício de suas funções. Segundo o entendimento dos ministros à época, as declarações do deputado extrapolavam a imunidade.

Segundo Maíra Zapater, pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena da Fundação Getulio Vargas, as declarações do Major Olímpio nas redes sociais podem configurar incitação ao crime, com pena de três a seis meses de detenção e multa. “Ele está recomendando a outros que pratiquem homicídios ainda não consumados.”

As afirmações do ex-secretário de Juventude de Temer seriam mais bem enquadradas como apologia, entende a pesquisadora da FGV. “Neste caso há uma defesa para mais delitos como esse ocorrerem.” Em ambos os casos, a interpretação da Justiça é uma incógnita por causa do atual momento político, diz Zapater. “O discurso punitivista está ganhando a opinião pública e há decisões recentes do Judiciário que acompanham essa tendência.”

O discurso de ódio no País tem deixado as caixas de comentários das redes sociais e chegado às vias de fato. Na noite de 31 de dezembro, o técnico de laboratório Sidnei Ramis de Araújo encampou em Campinas uma chacina com 12 mortos, entre eles a ex-mulher e o filho. Antes de cometer os homicídios, Araújo escreveu uma carta na qual tentava justificar o ato.

No documento, o assassino chama a todo momento a mãe de seu filho e outras mulheres de sua família de “vadia”. Trechos da carta demonstram a semelhança entre seus argumentos e aqueles propagados diariamente nas redes sociais. “No Brasil, crianças adquirem microcefalia e morrem por corrupção (…) eu morro por justiça, dignidade, honra e pelo meu direito de ser pai! Na verdade, somos todos loucos, depende da necessidade dela aflorar!”

A filósofa Marcia Tiburi, autora do livro Como Conversar com um Fascista, classifica a chacina em Campinas como uma metonímia do atual momento do País. “O ato desse cidadão é uma parte que vale pelo todo. O discurso é análogo ao de grandes atores da política e do Judiciário.” A filósofa destaca dois fatores preocupantes na carta.

“Primeiro, ela é um ‘copia e cola’ de preconceitos que transitam livremente nas redes sociais. Segundo, é sintomática a criatividade dele ao chamar a lei que pune a violência contra a mulher como ‘vadia da Penha’. Há um sentimento de que a própria Constituição tornou-se uma espécie de lei vagabunda.”

Para a filósofa, as atuais condições econômico-políticas trazem à tona energias afetivas negativas. “Como qualquer afeto, o ódio é um sentimento manipulável. A raiva e o amor não são naturais, eles florescem em determinadas condições”, explica Tiburi.

“Os discursos de ódio são publicitários: eles servem para nos enganar e nos vender uma ideia, seja para adquirir uma mercadoria ou votar em parlamentar e aderir a uma igreja.” Contra as certezas do discurso, a filósofa sugere o diálogo como forma de resistir ao autoritarismo vigente. “É preciso questionar e desconfiar mais.”

Talvez Polemarco conservasse sua definição maniqueísta de justiça, não fosse o contraponto de Sócrates. O filósofo grego pacientemente desconstrói, segundo a narrativa de Platão, o conceito de seu interlocutor, ao argumentar que “devolver o mal aos inimigos” apenas torna os seres humanos piores. O esforço dialógico de Sócrates confundia-se com seu projeto de formação cívica em meio à construção da democracia ateniense. Infelizmente, o diálogo democrático é um valor cada vez mais raro no Brasil.

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