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Maldade, bondade e saúde mental: a questão do modelo científico dominante

Política pública em geral é feita e decidida com base em estatísticas; gestores só sabem refletir sobre custos

Não é que sejamos intencionalmente maus por construir hospitais psiquiátricos e presídios que parecem campos de concentração, ou ainda, por aplicar eletrochoques na cabeça de pessoas, cortar pedaços de seus cérebros (lobotomia), ou mesmo dopá-las com altas doses de psicotrópicos – camisa de força química. Há um modelo científico dominante que endossa, explica e propõe essas estratégias de “correção” física, elétrica e química do comportamento e mente humanos.

O neurocirurgião português Egas Moniz ganhou o prêmio Nobel com a lobotomia. A indústria farmacêutica fatura bilhões de dólares, com lucros crescentes nas últimas décadas, e graças à sua poderosa propaganda, a maior parte dos profissionais de saúde é ensinada que a droga é a principal estratégia terapêutica, como eu próprio aprendi na escola de medicina.

Tratamos o organismo como máquina, as pessoas como números, a medicina como se fosse química, física ou engenharia. A política pública em geral é feita e decidida com base em estatísticas; os gestores só sabem refletir sobre custos; a decisão é fria e calculada.

O equívoco na gestão da saúde está, acima de tudo, no modelo científico de mente e corpo que emergiu na Europa há 400 anos, com a chamada Revolução Científica, que propunha exatamente o domínio da natureza, o controle dos organismos como se fossem máquinas, interpretá-los através da matemática, com intervenções físicas, químicas e elétricas que foram aparecendo nos séculos subsequentes.

Essa maneira de explicar gerou imensa tecnologia útil, mas também destrutiva, e no atual momento histórico não nos resta mais dúvidas que pegamos a trilha errada da ciência, principalmente da biologia e da medicina. Perdemos completamente a conexão com o mundo natural, com os animais, o meio ambiente e com nossas próprias emoções.

Na escola médica, as principais disciplinas dessa biologia cartesiana nos ensinam a estudar as partes, detalhada e separadamente, para chegar ao entendimento do todo: estudamos ossos, músculos, tendões, células, moléculas, neurônios, fluxos bioelétricos, canais de sódio e potássio nas membranas celulares, genes, epigenes, RNAs de interferência. Temos um arsenal de conhecimento tão imenso que muito poucos médicos e biólogos conseguiram fazer sentido, com tanta informação confusa, e aplicar em sua prática modelos realmente racionais e eficientes.

Nossa doença mental é pelo excesso de informação, não pela falta. Temos tanto conhecimento sobre tudo que não temos mais como fazer sentido e entender o caminho que estamos construindo.

Nessa medicina moderna, certamente a especialidade com maior filiação cartesiana é a Psiquiatria que, montada no organismo enquanto máquina, tem ilusão de controle sobre a mente e o corpo e acaba levando a encarceramentos, psicotrópicos e eletrochoques, ao invés de abordagens realmente terapêuticas e eficientes. E devemos compreender esse fenômeno não como má-fé ou má intenção de certas pessoas, mas como consequência de uma visão de mundo equivocada, informada pela ciência europeia, que fundou um mundo caduco e febril.

Podemos nos assumir originais e diferentes da civilização ocidental agonizante e afirmar a ciência produzida por brasileiros gênios como os psiquiatras Nise da Silveira e Osório Cesar, o imunologista contemporâneo Nelson Vaz, o educador Paulo Freire e o antropólogo Darcy Ribeiro, e fazer esse país dar certo, com políticas não mais de dominação e opressão do povo, mas políticas de desenvolvimento humano e comunitário. Sabemos que é possível, pois experiências nacionais e internacionais assim o demonstram.

O desafio não é vender, é comunicar, tornar comum, reconstruir o espaço comum, público, com práticas e ideias de qualidade, conquistando a atenção e a opinião pública com ideias fortes e claras, construídas na experiência. É possível, necessário e urgente.

* Vitor Pordeus é médico, pesquisador, ator, psiquiatra transcultural – Division of Social and Transcultural Psychiatry, McGill University, Montreal (Canadá) e foi Coordenador-fundador (2009-2016) do Núcleo de Cultura Ciência e Saúde, Teatro de DyoNises-Hotel e Spa da Loucura, Instituto Municipal Nise da Silveira, e fundador da Teatro Clínica Therezinha Moraes – Universidade Popular de Arte e Ciência (www.Upac.com.br), Rio de Janeiro, Brasil.

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