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A inclusão digital no Brasil serve ao consumo e não à cidadania

As decisões políticas acerca da internet e a concentração econômica do setor têm matado o caráter livre originário da rede criada por Tim Berners-Lee

Uma das belezas da Rede Mundial de Computadores (World Wide Web), que a consolidou, em tão poucos anos, como ferramenta de comunicação global, é o fato de que seu criador, Tim Berners-Lee, segue trabalhando para que a internet alcance seu potencial transformador.

Berners-Lee está vivo, tem 61 anos e tem deixado bem registrado o que pensa sobre as mudanças de orientação da rede. Entre as características que ele defende é que a Web deve permanecer aberta. Mas, infelizmente, essa é uma batalha que ele – e nós – estamos perdendo para interesses corporativos e ausência de um Estado eficaz em defender os interesses de grande parte da população.

O que Berners-Lee fez, em 1989, foi juntar a ideia de hipertexto com as ideias de Protocolo de Controle de Transmissão e Sistema de Domínios e Nomes e daí nasceu a Web, uma rede, uma teia, em que os assuntos vão se interligando, criando os mais diversos percursos de conhecimento possíveis. Infinitos.

Esta Web já não é realidade para muitas pessoas. Para boa parte do mundo “em desenvolvimento”, a internet é o Facebook, conforme aponta pesquisa, e isso não está acontecendo simplesmente apenas porque as pessoas são tragadas para o “livro das caras”, mas como resultado de uma escolha política e que deve se acentuar ainda mais no próximo período.

No caso do Brasil, o incentivo à política de massificação do acesso à conexão por meio da rede móvel reforçou e segue a reforçar o poder que fabricantes de smartphones, ou “espertofones” (mercado onde há acentuado duopólio) têm de escolher os aplicativos vencedores para serem embarcados por padrão, de fábrica.

Para se ter uma ideia do valor que sair embarcado de fábrica tem para uma plataforma digital, em janeiro de 2016, a Bloomberg teve acesso a documentos indicando um acordo entre Google e Apple, em 2014, em que a gigante online pagou 1 bilhão de dólares à Apple para se manter como buscador padrão nos iPhones.

Quando a navegação na Web se dá predominantemente por aplicativos – como é o caso dos sistemas operacionais móveis, até por conta da limitação de tela e desconforto de teclar – a chance de o usuário fugir dos apps “vencedores” é muito menor. Perdem os produtores de conteúdo que não têm recursos para criar seus próprios apps. Perde a diversidade e perde a economia do Brasil: a expectativa era de que, em 2016, o mercado global de aplicativos móveis atingisse 51 bilhões de dólares em receita bruta, em todas as lojas de aplicativos, de acordo com pesquisa da App Annie.

Vale lembrar que quando, durante a primeira gestão Dilma Rousseff, foi lançada a política de incentivo fiscal para o comércio de espertofones, houve uma tentativa de impor contrapartida aos fabricantes. Um dos principais debates era o embarque de aplicativos nacionais para obtenção da isenção fiscal proposta.

A indústria obviamente se contorceu e chiou o quanto pôde, e o governo foi recuando até que a política, em vez e aperfeiçoada por meio do diálogo com os diversos setores interessados, simplesmente desidratou. Nenhuma outra política de peso, do tamanho que este segmento econômico (e em ascensão) requer, foi apresentada para sustentar o desenvolvimento e crescimento do mercado de apps brasileiros. Contentamo-nos em deixar esta parcela da nossa economia escoar para os países com liderança tecnológica.

A concentração da navegação em umas poucas aplicações tem ainda razões de ser. Soma-se a essa narrativa de incentivo puro à internet móvel e à navegação por dispositivos, o silêncio do governo brasileiro, da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e mesmo do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) acerca da liberação do tráfego de dados em determinados aplicativos – por acordos entre as plataformas digitais e operadoras, apesar de o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14) e sua posterior regulamentação estabelecerem a neutralidade de rede como um princípio e a obrigação de os responsáveis pela transmissão, comutação ou roteamento terem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados.

Não poderia haver distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação, exceto quando requisitos técnicos sejam indispensáveis à prestação adequada dos serviços e priorização de casos de emergência (por exemplo, melhorar o tráfego no site da Receita Federal às vésperas do prazo da declaração de imposto de renda). Ainda, diz a legislação, no caso de discriminação ou degradação do tráfego, o responsável deve abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais e de causar danos aos usuários.

Em todo o mundo, os planos de dados que liberam a navegação em determinados aplicativos em detrimento de outros, aplicada por várias operadoras no Brasil, vem sendo, cada vez mais, classificada como anticoncorrencial e danosa aos interesses dos cidadãos e consumidores. São planos que permitem apenas o uso, por exemplo, do Whatsapp quando o pacote acaba e o usuário não consegue mais navegar na internet.

Em dezembro, a Federal Communications Commission (FCC, o órgão regulador das comunicações nos Estados Unidos) enviou uma carta à operadora de telecomunicações AT&T em que informou sua conclusão preliminar de que as ofertas deste tipo oferecidas naquele país pela operadora ferem o princípio da neutralidade. E sim, isso aconteceu nos Estados Unidos, onde predomina o princípio do livre mercado.

Com a eleição de Trump, não se sabe como o processo se desenrolará. Mas, no Brasil, seja antes ou depois de Michel Temer, não há movimentação por parte do governo ou das áreas competentes para analisar este tipo de “promoção” de acordo com a legislação vigente e tomar as medidas necessárias para preservar a internet aberta e neutra.

Para além dos espertofones, a ausência de uma política de banda larga fixa

A diversidade de fontes e a riqueza da internet se dá principalmente quando o usuário está utilizando navegadores e, de preferência, em telas maiores. Ou seja, com computador e banda larga fixa. As políticas para ampliação da penetração de ambos são, no entanto, pífias.

Não foi em uma ou duas ocasiões em que os chefes da extinta pasta das Comunicações elogiaram o modelo de acesso móvel via rádio como o futuro da conexão no País. Não à toa, o modelo preferido das grandes operadoras de telecomunicações para conectar um país com estrutural e estruturante lacuna de infraestrutura.

O resultado é que, no Brasil, a nona maior economia do mundo considerando o critério do Fundo Monetário Internacional de Produto Interno Bruto (PIB) nominal, apenas metade (51%) dos domicílios têm acesso à internet, de acordo com a pesquisa TIC Domicílios 2015 divulgada em setembro de 2016.

O percentual ficou estável em relação à pesquisa do ano anterior (50%). Ou seja, pelas regras de mercado atuais, a conexão por banda larga fixa em domicílios atingiu o teto, apesar de ainda estarmos tão distantes da universalização.

Ainda de acordo com a TIC Domicílios 2015, pela primeira vez o número de brasileiros que acessam a Web pelo celular superou o de brasileiros que acessam a internet em computadores. À época, o Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação, responsável pelo levantamento frisou:

“Esta realidade coloca desafios importantes para o desenvolvimento de habilidades digitais requeridas para a nova economia digital. Entre os usuários de internet que acessam apenas por telefone celular, a proporção dos que realizam atividades online, relativas ao trabalho ou a governo eletrônico, por exemplo, é menor do que aqueles usuários que acessam a rede também por computadores”.

Alexandre Barbosa, gerente do Cetic.br, demonstrou preocupação com o tipo de inclusão digital que o Brasil escolheu estimular à época da divulgação dos resultados: “As atividades de maior valor agregado são justamente as mais requeridas pela nova economia digital. No entanto, elas pressupõem habilidades digitais mais complexas, que vão além do uso instrumental das aplicações corriqueiras como as de rede social ou de envio de mensagens, demandando uma maior apropriação das novas tecnologias e aplicações”, disse.

“Neste sentido, o computador desempenha um papel fundamental para apropriação efetiva das tecnologias digitais pelos cidadãos — o que fica mais difícil para aqueles que somente acessam a rede pelo celular. É a partir da combinação do uso de diversos dispositivos, cada um com suas peculiaridades, e de aplicativos de maior complexidade que se possibilita o desenvolvimento de habilidades digitais mais sofisticadas”, completa.

Ao optarmos por incluir os brasileiros no universo digital e de navegação na Web majoritariamente por espertofones e banda larga móvel, com franquias de dados caras e extremamente limitadas, estamos escolhendo também um modelo de desenvolvimento econômico com baixo potencial de produção, programação e disseminação de conteúdo. É a inclusão digital para o consumo apenas, e não para a cidadania, para a economia e para o fortalecimento da democracia.

Pequenos como formigas: esforço dos provedores regionais leva conexão ao interior

Se há algum avanço da banda larga fixa no País, e aí considerando todos os tipos de conexão, inclusive comerciais, este avanço se deu pelo esforço dos provedores regionais (também chamados, por comparação às teles, de pequenos provedores).

Foi este grupo que adicionou 424,9 mil conexões à base, crescimento líquido de 18,72%, em 2016, acima dos grandes grupos econômicos como Vivo, América Móvel (controladora da NET e Claro) e TIM, conforme aponta o website de notícias especializado no tema, Teletime.

O curioso é que os provedores regionais ficarão de fora da farra que se dará com a aprovação do Projeto de Lei da Câmara 79/2016, que transforma as concessões de telecomunicações em autorizações e pretende transferir infraestrutura estratégica da União avaliada em 100 bilhões de reais para o patrimônio privado das grandes teles.

Como diria Olisnei Nascimento, provedor regional no Amazonas, em sua participação no documentário Freenet, o governo ajuda só as empresas de capital estrangeiro, enquanto os pequenos empresários brasileiros, que desbravam as regiões menos lucrativas, e por isso esquecidas pelo grande capital, mal conseguem acesso a crédito.

E, assim, o potencial da internet, aquele que vislumbrávamos quando o som da conexão discada cessava – sinal de que já era possível falar com todo o mundo – vai se desmanchando para dar lugar à vitória do interesse das grandes corporações.

Com a destruição do caráter aberto e neutro da Web, morre um pouco também a capacidade de solidariedade dos povos, a cultura e conteúdo independentes e a democracia. Mas ainda é tempo.

Não vamos deixar a internet morrer e, para isso, precisamos seguir na luta pela universalização do acesso à conexão de banda larga fixa, pela neutralidade de rede, pelo acesso a instrumentos de processamento de dados adequados à realização de funções diversas (como os computadores), mas, principalmente, pela formulação e construção coletiva – e partindo da sociedade civil – de uma política de inclusão digital para a cidadania e não apenas para o consumo. Precisamos abraçar essa tarefa.

Para quem quer ajudar e não sabe como, Berners-Lee dá a dica, em entrevista para o documentário Freenet: “Façam com que todos conheçam o Marco Civil da Internet do Brasil, defendam o Marco Civil da Internet brasileiro. Ele resguarda os princípios da Web”.

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