Revelada aos 63 anos, cantora e compositora deu voz à ancestralidade africana por meio de sambas imortais
Uma voz rouca, grave e rasgada sintetizava, nos anos 1970, a expressão de um Brasil com forte herança africana e singular formação religiosa. A dona da voz tão inconfundível tem nome: Clementina de Jesus da Silva.
Neta de escravizados, nasceu no ano de 1901, na cidade de Valença, na região cafeeira do estado do Rio de Janeiro. Mas, foi só aos 63 anos que ela ganhou os palcos e revolucionou o samba, após ter sido descoberta pelo poeta e futuro produtor musical Hermínio Bello de Carvalho. O jovem ficou fascinado pela sambista fluminense e passou a prepará-la para o espetáculo Rosa de Ouro, show que a consagraria.
A partir daí, Clementina de Jesus resgatou o conhecimento de seus antepassados e apresentou a cultura africana com a gravação de 13 LPs e participações em álbuns com grandes nomes da música popular brasileira, como Clara Nunes e Milton Nascimento.
Rainha Quelé, como ficou conhecida Clementina de Jesus, criou as filhas sozinha e trabalhou como empregada doméstica até o começo da vida artística. Negra, idosa e pobre, Quelé foi exemplo de força e luta para o povo brasileiro, em especial para as mulheres, como destaca Janaína Marquesini, uma das autoras do livro Quelé, A Voz Da Cor, que conta a história da mulher que atravessou décadas de samba.
“Além da Clementina representar essa riqueza cultural tão grande, ela ainda traz na história dela todas as dificuldades que ser mulher no Brasil traz e, além de ser mulher, ela ainda era negra e pobre. Ela carrega a verdade e a essência do povo mestiço e negro e tudo o que o Brasil é”, diz.
O estilo de samba de Quelé era o partido-alto, cantado em forma de desafio e de improviso. Partideira de mão cheia, Clementina de Jesus imprimiu em suas canções a luta contra a discriminação racial e o machismo, se tornando uma das maiores referências da música popular brasileira, como ressalta Magnu Sousá, integrante da dupla de irmãos sambistas Prettos.
“Imagine uma mulher nos anos 1970, pensando na probabilidade de 80% de machismo no Brasil, e principalmente dentro do ambiente do samba, cantar ‘Não vadeia Clementina, fui feita pra vadiar’, comenta.
Magnu se define como um “neto da geração Clementina de Jesus”, já que ela se tornou influência no repertório e nas ideias do artista. “A Clementina é a artista idosa mais pop do Brasil. Pop de moderno, de novo, de vanguarda e pop de popular. Eu digo é porque o artista não morre, ele é eterno. Ela [Clementina] está presente na vida de todos nós brasileiros, principalmente dos que amam o samba, que carregam a bandeira do samba e os que são adeptos, simpatizantes do gênero.”
Com o passar dos anos, Quelé se tornou símbolo da negritude no Brasil. Para uma das escritoras da biografia, conhecer Clementina é entender um pouco da formação do povo brasileiro. “É preciso mostrar mais uma vez a importância das nossas raízes, da identidade e formação cultural do nosso país, que foi construído por mãos negras. A história dela [Clementina] ajuda a gente a fazer esse reconhecimento de como nós chegamos até aqui.”
Em sete de fevereiro deste ano, Clementina de Jesus completaria 117 anos. Mulher vitoriosa, desafiou toda a cultura do samba estabelecendo uma ponte entre o folclore dos terreiros de candomblé e a música contemporânea.
SERVIÇO:
Em homenagem ao batuque, à personalidade vocal e às ideologias política e artística da sambista, o Sesc Santana traz a série de shows Obrigado, Clementina! com a interpretação do rapper Emicida e direção musical da dupla Prettos. Os ingressos podem ser comprados pela internet ou nas bilheterias do Sesc.
Data: 11, 12 e 13 de fevereiro.
Horário: 19 horas.
Local: Avenida Luiz Dumont Villares, 579 – Santana.
Preço: R$7,50 (associados do Sesc); R$12,50 (meia-entrada) e R$25 (inteira).