Estatal acusou vários funcionários pelo mesmo delito e responsabilizou trabalhadores por depredações que não foram detectadas em relatório de danos da empresa
São Paulo – Documentos do Metrô de São Paulo enviados ao Ministério Público revelam inconsistências nas motivações alegadas pela direção da empresa ao demitir por justa causa 42 metroviários após a última paralisação da categoria, ocorrida entre 5 e 9 de junho. As evidências reforçam a tese de que houve perseguição política aos grevistas.
A companhia acusa funcionários de terem cometido depredações que não constam da lista oficial dos patrimônios supostamente danificados durante as ações de greve. Por outro lado, elenca prejuízos à infraestrutura sem atribui-los a nenhum metroviário. O Metrô também responsabiliza vários trabalhadores pelos mesmos delitos, ocorridos numa mesma estação, numa mesma data e num mesmo horário.
Até mesmo os dois funcionários que acabaram reintegrados aos quadros do Metrô haviam sido acusados com alto nível de detalhamento. Um deles teria invadido a estação Ana Rosa, que interliga as linhas 1-Azul e 2-Verde, “danificando as fechaduras” e “impedindo a entrada de funcionários” em 6 de junho, às 6h15. Outro teria impedido o fechamento da porta do trem G-24 na estação Santa Cecília, na Linha 3-Vermelha, às 7h15 do dia 7 de junho.
No final, as insinuações mostraram-se equivocadas. Ambos foram reincorporados às funções em 7 de julho, um mês depois das demissões sumárias, sem qualquer justificativa formal da companhia. Em comunicado interno publicado na última sexta-feira (18), o Metrô afirmou que a readmissão foi uma “decisão de caráter técnico e envolveu a reavaliação das evidências coletadas durante as ações no dia de greve”.
Todos os 42 demitidos receberam telegramas. As correspondências afirmam invariavelmente que os trabalhadores violaram o artigo 482, alínea b, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT): “Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: b) incontinência de conduta ou mau procedimento”. O Metrô também cita o artigo 262 do Código Penal para embasar as demissões: “Expor a perigo outro meio de transporte público, impedir-lhe ou dificultar-lhe o funcionamento.”
A empresa diz ainda que ambas condutas infringem a Lei federal 7.783, de 1989, a chamada Lei de Greve, em seu artigo 6º, parágrafos 1º e 3º, que dizem: “Em nenhuma hipótese, os meios adotados por empregados e empregadores poderão violar ou constranger os direitos e garantias fundamentais de outrem”; e “As manifestações e atos de persuasão utilizados pelos grevistas não poderão impedir o acesso ao trabalho nem causar ameaça ou dano à propriedade ou pessoa”.
‘Depredações’
A análise do conteúdo dos telegramas mostra que 19 funcionários perderam o emprego por terem invadido e danificado fechaduras da estação Ana Rosa – entre eles figura um dos metroviários readmitidos. No entanto, a lista de depredações elaborada pela área técnica do Metrô não faz qualquer menção a “fechaduras quebradas” na estação Ana Rosa nem a qualquer outro dano ocorrido nesta estação da zona sul durante a paralisação.
As únicas fechaduras que, segundo a empresa, teriam sido danificadas pelos grevistas se localizam nas estações Anhangabaú, na Linha 3-Vermelha (“miolo de fechadura com defeito”), e Jardim São Paulo, na Linha 1-Azul (“fechadura/maçaneta com defeito”). Haveria ainda uma “porta com chave quebrada no miolo” na estação Itaquera, também na Linha 3-Vermelha, e um “totem preto de indicação do nome da estação” na estação Brigadeiro, na Linha 2-Verde.
As demais depredações listadas pelo Metrô são “pichações em pintura de concreto”, algumas com palavras de “baixo calão”, nas estações Penha, Patriarca, Vila Matilde e Carrão, na Linha 3-Vermelha, Praça da Árvore e São Judas, na Linha 1-Azul. De acordo com o Sindicato dos Metroviários de São Paulo, não houve ações de greve em nenhuma das estações apontadas pela empresa como alvo de depredação.
O Metrô ainda faz referência a um “portão de acesso com defeito” e “direcionadores de fluxo danificados” em Itaquera, que não foram atacados por metroviários, mas por usuários da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) descontentes com o fechamento da estação. (Assista aqui ao vídeo) Também há “gradil solto” em Artur Alvim e “cancela danificada” em Santana. Tampouco houve ações de greve nestes locais, segundo dirigentes do sindicato.
No documento enviado ao Ministério Público em 2 de julho, o Metrô afirma que os “danos” resultaram das “manifestações realizadas durante a paralisação parcial dos serviços”. A empresa informa que todos foram reparados ao custo total de R$ 3.818,00 – valor semelhante ao salário mensal de um operador de trens. Tais danos, no entanto, não foram atribuídos individualmente a nenhum dos 42 metroviários demitidos.
Portas
Os telegramas também responsabilizam 18 trabalhadores por impedir ou obstruir “fechamento da porta do trem (composição H-58), interrompendo a circulação dos trens”. Todos os 18 metroviários teriam incorrido no delito às 20h15 do dia 5 de junho, na estação Tatuapé, na Linha 3-Vermelha. O código “H-58” é a identificação de um trem específico: o trem número 58 da frota H, fornecido pela espanhola CAF.
Outros sete metroviários são acusados de impedir “fechamento da porta do trem (composição G-24), interrompendo a circulação dos trens”. O G-24 pertence à frota G, fabricada pela francesa Alstom. De acordo com o Metrô, todos os sete trabalhadores teriam obstruído o fechamento das portas na estação Santa Cecília, na Linha 3-Vermelha, ao mesmo tempo: exatamente às 7h15 do dia 7 de junho.
Por fim, nove metroviários são acusados de impedir fechamento das portas de um trem não identificado na estação Brás, na Linha 3-Vermelha, às 6h de 6 de junho. Há funcionários acusados de haver atrapalhado a circulação das três composições. Outros são apontados como participantes nas ações no Tatuapé e Brás. Outros, em Tatuapé e Santa Cecília. E alguns em apenas uma delas – inclusive um dos funcionários posteriormente readmitidos.
Obstruções ao fechamento de portas ocorrem cotidianamente no Metrô paulista, centenas de vezes ao dia, e se resolvem com a desobstrução, sem maiores problemas. Passageiros costumam fazê-lo para conseguir entrar no trem que está prestes a sair. Basta que uma porta não se feche completamente para que a composição não saia do lugar. Daí a estranheza das denúncias: não haveria necessidade de que 18 pessoas segurassem as portas do mesmo trem para impedir a partida.
Acusados
A RBA ouviu 38 dos 42 metroviários demitidos para saber se realmente tomaram as atitudes que o Metrô lhes atribui. A grande maioria nega com veemência as insinuações da empresa e desafia a direção a comprovar as denúncias. As acusações mais descabidas, dizem, se relacionam às supostas depredações na estação Ana Rosa – cujas “fechaduras danificadas” nem foram elencadas pelo relatório de prejuízos da companhia.
Os trabalhadores também rechaçam a tese de que “invadiram” estações, como informam os telegramas. “Nós entramos com crachá. Somos funcionários. Os seguranças abriram as portas normalmente e a gente acessou as estações para fazer a campanha de greve”, explica a agente de segurança Raquel Amorim, uma das demitidas. Raquel também é uma das que negam haver impedido fechamento de portas. “Não há argumentos.”
Acusado de haver obstruído as portas da composição H-58 na estação Tatuapé, o oficial de manutenção industrial Marcelo Alves de Oliveira atesta que sequer estava no local às 20h15 do dia 5 de junho, como aponta o Metrô. “Quando cheguei, a estação já estava fechada”, explica. “Tanto que entramos pela estação Tatuapé da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM). Usei meu bilhete de serviço para entrar. Se mostrarem um relatório de controle de acesso, posso provar.”
Para a agente de estação Camila Duarte Lisboa, o Metrô está tentando transformar ações típicas da greve em condutas criminosas. “Tudo que fiz foi entrar num trem e conversar com supervisor. Não precisei segurar porta para fazer isso”, explicou. Os trabalhadores alegam que estavam realizando “ações de convencimento” para demover os colegas que insistiam em trabalhar. Alguns teriam sido influenciados e desistiram de “furar” a greve.
Exemplo de telegrama enviado a demitidos para ‘explicar’ motivações da dispensa
A invasão de estações ou cabines por trabalhadores do Metrô é uma das acusações mais controversas. Sobretudo se analisada junto à imagem de um policial militar fardado e armado, ao lado do operador de um trem da frota A, que seguia no sentido da estação Tucuruvi, uma das extremidades da Linha 1-Azul. A imagem foi veiculada pelo Twitter oficial da polícia durante a greve (veja aqui), com os dizeres: “O paulistano, apesar de tantos problemas, sempre pode contar com a PM, mesmo em tarefas que não são propriamente dela.”
“Essa demissão me pegou desprevenido”, desabafa o operador de trens João da Silva, 67 anos de idade. Depois de 35 anos de serviço no Metrô, Silva planejava pedir desligamento da empresa em dezembro. Mas se viu surpreendido pelos telegramas após apoiar a greve. “Somei pouquíssimas faltas, nunca tive problemas de relacionamento. Me senti injustiçado. Até porque não impedi fechamento das portas do trem na estação Tatuapé, como eles dizem.”
“Meu telegrama fala que segurei as portas na estação Santa Cecília, mas na Santa Cecília nem cheguei a descer até a plataforma”, afirma a operadora de trens Marília Cristina Ferreira, que teve participação ativa nas paralisações. “Eles enquadraram os funcionários em categorias gerais, aleatoriamente. Por exemplo, vários teriam quebrado uma mesma fechadura exatamente no mesmo momento. Como isso é possível?”
“No meu caso, dizem que segurei portas de trem na estação Brás, às 6h, mas às 6h eu não estava lá. Cheguei era quase 8h”, afirma o controlador de tráfego Paulo Pasin. “Fui dialogar com os representantes da empresa e garantir que não haveria problema algum, porque a tropa de choque estava se dirigindo pra lá. E foi o que ocorreu.” Pasin lembra que na estação Brás há muitas câmeras de vigilância. “Eles poderiam mostrar os vídeos.”
‘Perseguição’
Os metroviários desconfiam que a decisão sobre as demissões foi tomada a partir de relatórios elaborados por funcionários de confiança da direção. Ao menos um e-mail assinado pelo supervisor geral do Metrô Antonio Wolga demonstra que havia orientação expressa para que chefes de seção produzissem listas com “função, nome e registro” de empregados que acatassem deliberações das assembleias promovidas pelo sindicato a partir de 15 de maio, quando a campanha salarial ganhou força e definiu planos de ação.
Todos os supostos delitos utilizados pelo Metrô para demitir 42 trabalhadores ocorreram entre os dias 5 e 7 de junho, antes que o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região emitisse veredito pela abusividade da greve, em 8 de junho. “Acho que o Metrô estava com essa lista pronta desde sábado (7). Não há nenhuma menção ao que ocorreu domingo (8) ou segunda-feira (9)”, opina a operadora Marília. “O Metrô pinçou algumas pessoas que participaram das ações de greve e resolveu demiti-las para dar exemplo.”
E-mail enviado por supervisor geral requisitando elaboração de listas sobre grevistas
O boletim de ocorrência 763/2014 respalda a versão dos metroviários. Lavrado pela supervisora de segurança da estação Santa Cecília em 8 de junho, o documento denuncia sete funcionários por terem impedido “fechamento das portas da composição G-24, segurando-as, impedindo o funcionamento do sistema da linha três vermelha”. Segundo a peça policial, o delito ocorrera às 7h15 do dia 7 de junho. Todos os sete denunciados pela supervisora perderiam o emprego – e receberiam telegramas com as mesmas motivações alegadas pela chefe de seção no boletim de ocorrência. Inclusive um dos trabalhadores que foi reintegrado posteriormente.
Quase todos os demitidos tinham algum envolvimento na organização dos trabalhadores da empresa. Ao menos onze são diretores da atual gestão do Sindicato dos Metroviários de São Paulo, e outros três são ex-diretores. Dois são representantes da Federação Nacional dos Metroviários (Fenametro), entidade que teve até mesmo seu presidente, Paulo Pasin, desligado da empresa. Há ainda pelo menos 11 membros das diferentes Comissões Internas para Prevenção de Acidentes (Cipas), além de delegados e ativistas sindicais.
O artigo 543 da CLT veda dispensas de dirigentes sindicais desde o momento do registro de candidaturas sindicais até um ano após o final do mandato, caso sejam eleitos, salvo em caso de falta grave “devidamente apurada”. No artigo 165, a CLT impede a demissão de representantes da Cipa, salvo as que se fundarem “em motivo disciplinar, técnico, econômico ou financeiro”. Nenhum dos artigos foi citado pelo Metrô nos telegramas.
Na segunda-feira (21), os advogados do Sindicato dos Metroviários ingressaram com ação coletiva na Justiça do Trabalho, buscando a reintegração dos demitidos. Caso consigam, não será a primeira vez que tribunais revertem demissões em massa na empresa. Em 2007, após uma greve de dois dias, os grevistas acataram decisão do TRT e voltaram ao trabalho. Ainda assim, o Metrô demitiu 61 funcionários. Ao menos seis seriam reintegrados. Outros 42 aguardam julgamento de recursos.
Fiscalização
O auditor fiscal do trabalho Renato Bignami endossa a tese de que houve “perseguição” ou “discriminação” contra os metroviários. “As 42 dispensas só ocorreram porque houve greve”, aponta o funcionário da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego em São Paulo. “E por que só 42? Por que não todos os grevistas? O departamento de Recursos Humanos do Metrô me falou que a lista veio de cima. Foi fornecida diretamente, por setor, para a cúpula da empresa, e a empresa deu a ordem para executar as dispensas.”
As diligências de Bignami já resultaram num auto de infração contra a companhia por práticas antissindicais. O auditor não questiona as decisões da Justiça do Trabalho, que considerou a greve abusiva, mas lembra que “a sentença não é salvo-conduto para as demissões”. Até porque, diz, os telegramas enviados aos demitidos não comprovam nada. “Foram enquadramentos genéricos, que serviram para justificar o desligamento de muitos trabalhadores diretamente envolvidos nas atividades de greve.”
“Mais grave ainda é atribuir crimes aos trabalhadores”, continua Bignami. “Quem diz que um cidadão cometeu ou não cometeu crimes é o Judiciário. E tudo leva a crer que não cometeram, porque eu perguntei ao Metrô se houve prisão em flagrante ou processo penal transitado em julgado contra os trabalhadores e me disseram que não.” O auditor lembra que boletins de ocorrência não são atestados de culpa. “A presunção de inocência, assim como o direito de greve, é garantida pela Constituição e deve ser respeitada.”
Bignami cogita a possibilidade de requisitar as imagens das câmeras de segurança do Metrô para comprovar a veracidade das denúncias feitas pela empresa contra os trabalhadores demitidos. E estuda elaborar outro auto de infração, agora sobre discriminação, caso a companhia não se explique sobre as razões das demissões. “Quis dar um castigo? Um aviso para a greve do próximo ano? Quais as reais motivações?”, questiona. “Está com toda a cara de limpeza. E isso não pode acontecer. O Estado não pode permitir.”
Ação
Os documentos oficiais do Metrô constam dos autos da ação civil pública movida contra o Sindicato dos Metroviários pelo promotor Maurício Antônio Ribeiro Lopes, que cobra da entidade uma indenização de R$ 354 milhões por “danos morais” causados à cidade de São Paulo durante a greve – valor que o próprio promotor considera “impagável”, mas ainda assim “insuficiente” para arcar com os prejuízos causados pelos grevistas.
Lopes revela que a ação tem “um caráter pedagógico” e que, com a multa, pretende “dar uma lição” na categoria. Apesar de não tratar de questões trabalhistas no processo, o promotor solicitou documentos ao Metrô que “comprovassem” as depredações nas estações, as barreiras impostas aos grevistas ao funcionamento dos trens e outras ações consideradas ilegais. E as utilizou como argumento para influenciar o entendimento do juiz.
Em entrevista à RBA, o promotor afirmou inicialmente possuir “imagens, relatórios, avaliações e cópias dos boletins de ocorrência” lavrados pelo Metrô para sustentar a culpa dos metroviários demitidos, declarando-se convencido da veracidade de todas as informações. “O Metrô documentou tudo, individualizou condutas, inclusive para promover aquelas demissões”, enumerou. “Está demonstrado.”
Porém, questionado se teve acesso às imagens que comprovariam as ações dos metroviários, Lopes mudou o discurso e disse possuir apenas “documentos em papel”. Três tipos de evidência foram remetidas ao Ministério Público: fichas funcionais dos trabalhadores demitidos; conteúdo dos telegramas justificando as demissões; e uma lista de danos ocorridos durante a greve. Todos estão assinados pela Coordenadoria de Controle Externo e por um advogado do Metrô.
Confrontado com a versão de metroviários que negam as acusações da empresa, Lopes lembrou que falsa comunicação de crime também é um delito. “Se os relatórios não forem verdadeiros, sujeitam à responsabilização quem os fornece ao Ministério Público”, reconheceu, minimizando, porém, as possibilidades de que o Metrô tenha lhe prestado informações equivocadas. “Não me parece razoável. Não posso partir dessa presunção. Tenho relatórios que vieram da empresa – e que, portanto, são documentos.”
Ao analisar a requisição da promotoria, em 10 de julho, o juiz da 12ª Vara Cível de São Paulo Carlos Aleksander Romano Batistic Goldman redirecionou o pedido de multa para a Justiça do Trabalho. O magistrado considerou que a Justiça comum não tem competência para julgar o processo, porque o mérito seria “indissociável ao exercício do direito de greve, sendo os hipotéticos prejuízos coletivos inerentes e decorrentes da suposta abusividade da paralisação”.