Ex-presidente também falou sobre política externa, crescimento econômico e combate à corrupção
O jornalista Kennedy Alencar divulgou nesta segunda-feira (13) a íntegra da entrevista realizada com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no último dia 3 em Curitiba (PR). Parte do depoimento foi utilizada em matéria feita pelo canal BBC e reproduzida na sexta-feira (10).
Passando por diversos temas como crescimento econômico, reforma da previdência, política externa e combate à corrupção, Lula falou sobre as diferenças entre seu governo e a atuação de Bolsonaro, em pouco mais de 4 meses de governo.
A entrevista durou cerca de duas horas e foi realizada na Superintendência da Polícia Federal no Paraná. Lula está preso desde o dia 7 de abril de 2018.
Veja alguns dos principais pontos da entrevista.
Política externa e alinhamento com os Estados Unidos
O primeiro ponto questionado pelo jornalista Kennedy Alencar foi o papel que o Brasil passou a ocupar no cenário mundial depois do governo do ex-presidente (2003-2010). Lula afirmou que colocar o Brasil como protagonista na geopolítica internacional era um de seus principais objetivos. E ressaltou que, para isso, teve a ajuda de muitos presidentes.
“Fui o único presidente do Brasil a participar de todas as reuniões do G8, menos a feita em São Francisco, convidada pelo Bush, que foi a segunda. E eu fui um dos artífices da criação do G20 para discutir a crise de 2008. O Brasil virou protagonista, o Brasil passou a ser respeitado, o Brasil passou a ser levado em conta. Os brasileiros que viajavam tinham orgulho de viajar com o passaporte brasileiro. E o Brasil estava propenso a se transformar na quinta economia do mundo”.
Em relação a atual política externa do Bolsonaro, Lula criticou fortemente as atitudes que vêm sendo tomadas em relação a mercados como a China e os países árabes, além do alinhamento com os Estados Unidos.
“Quando a gente briga com o mundo árabe, quando a gente briga com o Mercosul, você vai vender para quem? Para os Estados Unidos? Os Estados Unidos não querem comprar soja do Brasil, não querem comprar milho do Brasil, não querem comprar carne do Brasil, porque eles produzem. E também não querem comprar produto manufaturado”.
E acrescentou que é preciso que o Brasil se fortaleça em sua soberania.
“O Brasil não tem que se alinhar nem a Washington, nem a Pequim, nem a Moscou, nem muito menos a Frankfurt. O Brasil tem que se apoiar na sua soberania. O Brasil é um país que tem 210 milhões de habitantes. O país tem efetivamente quase tudo que precisa. Tem um potencial intelectual extraordinário! O que o Brasil precisa é parar de ser mesquinho. E em tudo que você quer fazer para avançar a sociedade, aparece alguém para dizer: ‘Não pode, não pode. Não tem dinheiro’. Você sabe o que eu dizia para o meu pessoal? ‘Gente, é o seguinte, vamos parar de discutir que a gente não pode fazer as coisas e vamos discutir quanto custou ao Brasil não fazer as coisas na hora certa.’”
Crescimento econômico, privatizações e reforma da Previdência
O jornalista, no entanto, questionou a possibilidade de investimentos no cenário atual, afirmando que “hoje a relação entre a dívida pública e o Produto Interno Bruto (PIB) é muito alta”. Em resposta, o ex-presidente disse que a tendência é que essa relação aumente, exatamente porque não há investimento para acelerar o crescimento econômico. E que, para prejudicar ainda mais a situação, o país está vendendo seu patrimônio.
“Na hora em que você começa a crescer, você diminui a dívida. Se você não investe e não cresce, a dívida aumenta. Agora, veja, quando o país toma a decisão absurda de vender todo o patrimônio construído ao longo da história para resolver a dívida pública, o que vai acontecer? Daqui a alguns meses ou daqui há um ano, a gente não tem mais patrimônio, e a dívida continua. Porque, para resolver a dívida, a economia tem que crescer, o povo precisa consumir, o povo precisa comprar, e o Brasil precisa vender mais lá fora. E para vender lá fora, tem que ter gente vendendo. Ninguém compra do Brasil porque fulano de tal é presidente. Você tem que ir atrás”.
Seguindo essa linha, Lula lembrou que um dos pilares do seu governo foi a promoção do crescimento econômico alinhada à distribuição de renda.
“No Brasil, sempre se discutia: é preciso crescer para distribuir ou distribuir para crescer. E nós chegamos à conclusão de que era preciso fazer os dois concomitantemente: era preciso crescer distribuindo e distribuir crescendo. Não dava para fazer as pessoas esperarem, como o meu amigo Delfim Neto dizia: ‘Primeiro, o bolo vai crescer. Quando o bolo crescer, vamos distribuir’. O bolo crescia, alguém comia, e o povo ficava esperando. E nós, então, resolvemos fazer isso”.
Segundo o presidente, é exatamente a falta de crescimento e o desemprego a causa do problema fiscal do país – utilizado hoje como justificativa para a reforma da Previdência. Segundo ele, em 2014, não havia “rombo” na Previdência.
“Não é questão de economista, é uma questão de numerologia: é só pegar os números. A Previdência brasileira era superavitária em 2014, era superavitária! Na medida em que começa a decair o crescimento econômico, cai o consumo e tudo. Obviamente, vai aumentando a dívida. Eu acho que, a cada geração, tem que se preparar a Previdência para a próxima geração”.
E quando questionado sobre qual reforma da Previdência deveria estar sendo feita, ele disse que não há um modelo, mas que qualquer proposta deveria ser discutida com a sociedade.
“Eu não vou dizer que reforma tem que ser feita, vou dizer o seguinte: o governo quer fazer uma reforma? Ele chama as centrais sindicais, que são legítimas representantes dos trabalhadores, chama os aposentados, chama os empresários e senta numa mesa. E vamos colocar a realidade para se discutir. É isso, você fazer uma coisa que não precisa ser dolorida. Você não pode discutir reforma da Previdência para resolver a crise. Você discute a reforma da Previdência para discutir a melhoria dos aposentados. Porque o que eles estão fazendo não é reforma, é estupro, é destruição, é demolição”.
Governo de conciliação?
Em resposta sobre ter feito um governo de conciliação com as elites – uma das críticas que permeiam seu governo –, Lula nega que tenha tido essa atitude. Ele disse que, na verdade, fez uma administração em que todo mundo ganhou.
“Só não pode todo mundo ganhar num jogo de futebol. Um tem que ganhar ou, no mínimo, empata. Veja, eu tinha um país esfacelado. Vamos lembrar quando eu cheguei, pela eleição, à Presidência da República. O Brasil era desacreditado a nível internacional; o [ministro da Fazenda Pedro] Malan todo ano ia pedir dinheiro para fazer o fechamento do caixa; o Brasil devia ao FMI; o Brasil não tinha dinheiro para financiar as suas exportações. E o Brasil tinha uma dívida com o FMI. O que nós fizemos? Nós reconquistamos a credibilidade. O Brasil saiu de 60 bilhões de exportação para 480 bilhões de exportação. Não é pouca coisa. Nós criamos uma série de instrumentos, o que fez o Brasil ir ganhando confiança, e ganhando confiança, e crescendo, e crescendo. E eu tinha certeza de que o Brasil só ia crescer quando mais da metade da população começasse a consumir. Aquela ideia minha de que muito dinheiro na mão de pouca gente é concentração de renda e pouco dinheiro na mão de muitos é distribuição de renda.”
Processo e combate à corrupção
Lula voltou a defender sua inocência e reafirmou que, até agora, nada foi apresentado contra ele. “A única coisa que eu estou é desafiando a prova. Alguém tem que mostrar!”. Disse ainda que, durante o seu governo, foram endurecidas medidas de combate à corrupção e que a ordem “era apurar contra quem quisesse”. Para exemplificar, citou o caso da investigação contra seu irmão Genival Inácio da Silva, o Vavá.
“[Eu] recebi uma informação de que iam na casa do meu irmão Vavá. E eu fiz questão de dizer: ‘Deixem ir. Eu quero que vá’. E foram à casa do Vavá. Eu tinha consciência de que o meu irmão era um coitado de um trabalhador que jamais teria cometido um delito qualquer. E foram à casa do Vavá, invadiram a casa do Vavá. Eu depois fiquei pensando em até chamar o diretor da Polícia Federal e punir alguns agentes, mas falei: ‘Não, vamos deixar. Eu não vou aproveitar do meu cargo, não. O importante é a inocência do meu irmão’. Você está lembrado de que eu era favorável a apurar. Foi no nosso governo que fizemos a Lei da Transparência, para apurar qualquer coisa”.
O próprio jornalista lembrou sobre a criação da lei da delação premiada, criada durante o governo da presidenta Dilma Rousseff, em 2013. E o ex-presidente acrescentou, criticando a politização da Lava Jato:
“Nós fizemos tudo, tudo. Nós não queremos que este país continue tendo corrupção. O que aconteceu de grave é que a Lava Jato foi transformada num partido político, foi transformada num partido político! O comportamento do Moro era o de um cara… É só pegar a quantidade de vezes que, nesse processo todo, as pessoas trabalharam apoiando o Aécio contra a Dilma, apoiando o Bolsonaro contra a Dilma. Então, como eu não quero ficar no “disse que disse”, eu vou brigar. Eu vou brigar. Eu só quero que eles mostrem uma prova. Na hora em que eles mostrarem uma prova – uma prova, não precisam ser duas, uma só – de que eu cometi um crime, eu me calo”.