Quando visitei o set de Que Horas Ela Volta?, em 2014, cheguei no meio de uma festa. Casa grande, bem arquitetada (com um quê de modernista, como diz a personagem Jéssica), cheia de convidados bem vestidos e descolados, que conversavam entre si sem enxergar a única pessoa que de fato trabalhava, a empregada Val (Regina Casé).
Vestindo a ‘roupa de festa’ das empregadas domésticas (diferente das camisetas gastas que usa no dia a dia), Val caminhava quase mecanicamente com uma bandeja cheia de ‘finger foods’ em punho. Fosse um robô, para os convidados, não faria diferença. Os únicos que de fato a viam eram os jovens filhos dos convidados, que brincavam, faziam piada, tinham uma relação até carinhosa com ela.
Assim como Val, que sempre observa da coxia a vida ’em primeiro plano’ dos patrões e de seus amigos, escondida na cozinha, sempre à espera de receber ordens, assisti a tudo da cozinha da casa, vendo Regina Casé entrar e sair de cena com naturalidade admirável.
Depois de findas as filmagens do dia, já tarde da noite, conversei com Regina na mesa da sala. Ela ainda vestida de Val, mas com jeito de falar seu, causava uma sensação interessante. Um estrangeiro, como ocorreu com alguns críticos internacionais, poderia dizer que a atriz era de fato uma babá/doméstica que ganhou o papel no melhor estilo ‘neorrealismo italiano’.
Atriz virtuosa e apresentadora que teve a chance de viajar o País todo, conhecendo Vals não em seus uniformes, mas em suas vidas, suas cidades-natais, casas e festas, Regina contou que estava feliz em prestar uma homenagem a todas elas, emprestando um pouco de cada uma para compor sua personagem tão cativante.
Só que em vez de neorrealiamo italiano, era a nova realidade brasileira que a diretora Anna Muylaert colocava em quadro. Val era mais uma das tantas mulheres que deixaram suas famílias para viver como coadjuvantes da vida de outras famílias, que cuidam dos ‘filhos dos outros’ e deixam os seus com as avós, tias, babás mais jovens e menos preparadas, nas periferias ou em suas cidades natais.
O neorreal era o fato de que esta corrente quase eterna de gerações de babás e empregadas domésticas tinha acabado de romper com Jéssica, a filha da Val, que, em vez de chegar de Pernambuco (ou de um bairro de periferia) para aprender o ofício da mãe, chega chutando a porta das convenções para prestar vestibular na capital.
A chegada do elemento estranho e provocador neste teorema em que o equilíbrio é tênue e as regras são todas tácitas (afinal, “tem coisa que a gente já nasce sabendo”) tira os convidados da festa (para qual as Vals nunca são chamadas) de seu estado de torpor diante de uma situação absurda que existe, mas chega a parecer imaginação. Sim, ainda hoje, no Brasil, há que acredite que existe gente que nasceu para ocupar um lugar e gente que nasceu para ocupar outro.
Não só por sua grande qualidade cinematográfica e um roteiro certeiro, mas também por tocar em um ponto nevrálgico do inconsciente coletivo do brasileiro, Que Horas Ela Volta? não deixa ninguém permanecer indiferente. Sutilmente, nos mínimos detalhes do dia a dia, nos diz: o rei, a rainha, o príncipe, o bobo da corte… todos estão nus! E nós fingimos que isso tudo é normal.
E muito por tratar de algo que nos é tão cotidiano, é natural que cada um, ao ver o filme, se identifique com os personagens. Há gente que é mais Val, há quem seja mais Jéssica, há outros, sem fingir uma falsa simpatia, que são mais a patroa sem saber o que fazer diante da ‘nova ordem mundial’. “A filha da empregada agora toma o sorvete do meu filho, senta à mesa e nada na piscina. Menina chata!”, disseram alguns no Festival de Gramado, onde o longa foi exibido há pouco.
Outros se veem no garoto. “Sempre tive babá e não sabia se botava a babá no desenho de família quando era pequena”, comentou a diretora em uma das tantas entrevistas que deu. “Meus pais viajavam muito, eu sempre fui dormir no quarto da babá. Era difícil me tirar dali”, contou Regina ao TelaTela.
Mas, como observaram Regina e Anna, o ambiente é complexo, pois as relações de trabalho se misturam às afetivas em um microcosmo em que a distância entre o campo profissional e o doméstico pode ser a distância da sala de jantar para a cozinha.
Quem há de negar que o afeto que há entre Val e o garoto Fabinho, o filho adolescente dos patrões, é verdadeiro e legítimo? Quem há de negar que a patroa cumpre um script que lhe foi dado pela história e se vê pela primeira vez confrontada com uma nova forma de se organizar as relações entre empregadores e empregados trabalhadores domésticos? “Não me acho melhor do que ninguém, mas também não me acho pior”, diz Jéssica (Camila Márdila), a filha. É isso!
Abrindo mão da neutralidade jornalística e me colocando em primeira pessoa, eu sou mais Jéssica. Nunca tive babá e muito menos empregada. Na minha casa de família classe média bem média, daquelas que estremecia a cada novo plano econômico dos anos 90, nunca houve nem mesmo um quarto de empregada que virou dispensa. A faxina era feita em mutirão. Todo mundo entrava na dança da vassoura.
Confesso que não achava o melhor programa de sábado, mas que limpar sua própria latrina, como bem comentou o Gregório Duvivier, é educativo. A primeira vez que fui à casa de um amigo da escola com empregada uniformizada, eu não sabia se ajudava a moça a tirar a mesa ou se fingia achar tudo supernatural. Não, eu não achava. Eu me sentia desconfortável em ter alguém levando meu prato para a pia.
Isso não me faz melhor do que ninguém que cresceu tendo babá, empregada e afins. Apenas me deu uma vivência e um olhar diferentes. Portanto, não há julgamento moral ou ético nesta observação, mas apenas de costume. Tudo é cultural.
Como disse Regina Casé ao TelaTela, não é haver ou não babás ou empregadas domésticas o problema. Mas sim as relações humanas e de trabalho que se impõem. Se for um trabalho justo, bem pago como outro qualquer, é um emprego digno.
Acredito que justamente a cultura que começa a mudar no Brasil, ainda que a passos menos rápidos do que poderia ser, é a de que não há mais mão de obra disposta a viver em um emprego cuja carga horária praticamente não termina nunca. Afinal, ali no quartinho com vista para o varal, sempre à mão, bastava chamar para a Val socorrer a família no que quer que fosse. Inclusive dar colo ao filho do patrão que ela praticamente criou.
Já reparou como as novas plantas de prédios de classe média alta não possuem mais o clássico quarto de empregada? Virou dispensa, escritório… A empregada, hoje, nos grandes centros urbanos, tem que ter casa, hora extra, carteira assinada, férias, benefícios. Tem suas funções como contratada também, claro. Afinal, é uma relação de trabalho e não de servidão. E a filha dela tem a escolha de querer, ou não, seguir a profissão com que a mãe tirou o sustento para dar à filha a oportunidade de mudança social. A propósito, o diálogo, huis clos, em que Val diz à filha Jéssica, que foi graças ao trabalho que a jovem tanto condena que ela pôde estudar e viver é cortante de tão real.
Jéssica, intimamente sabe disso. Talvez sua revolta seja com a ordem estabelecida das coisas. Ela quer romper com isso e, “atrevida”, até vestibular presta. Não quer muito. Quer entrar na faculdade, e competir de igual para igual por um lugar no mercado de trabalho. Quer quebrar as amarras não só doméstica quanto socialmente. Ela não inicia sexualmente o filho do patrão, em um ritual arcaico e colonial que até pouco tempo era ‘natural’ por aqui. Ela tampouco vê nele um bom marido e sua chance de um dia ser também patroa. Ela é sujeito e não objeto.
Fabinho, ainda que mimado, não a vê com as lentes dos pais. Ele puxa Jéssica para a piscina como mais uma igual. Quem se descabela com a “falta de noção” dos jovens é sua mãe. Ele não dá a mínima se ela comeu ou não seu sorvete. Ele também quer passar no vestibular, ainda que não saiba muito o que quer. Ela sabe. Ela quer ser arquiteta, construir talvez a beleza que no Brasil não é direito de quem mora nos fundões das grandes cidades.
Se esta mudança que simbolizam Jéssica e Fabinho não for boa para todos, não sei o que é.
Certo é que é transformar todas essas inquietações e detalhes nossos de cada dia que Anna Muylaert faz com delicadeza e força. A diretora com talento transformou uma inquietação muito pessoal em algo de alcance global.
Ela contou ao TelaTela que teve a ideia de contar esta história há 20 anos, quando se tornou mãe e notou que a babá de seus filhos viajava com a família, mas estava sempre longe de seus próprios filhos. Transformar um fato tão, infelizmente, ordinário (afinal, quantas Vals estão espalhadas pelo Brasil?) em algo extraordinário como Que Horas Ela Volta? é a chave de tudo.
Quando questionada sobre o porquê do filme, que fala de um microcosmo tão brasileiro, estar fazendo tanto sucesso internacional (o filme levou um prêmio especial em Sundance para a atuação de Regina Casé e Camila Márdila, a Jéssica, e já estreou em mais de 200 salas em vários países), Anna respondeu:”O filme fala de relações de poder e isso há em qualquer cultura, qualquer país.”
Dizem que a verdadeira revolução é a interna. De fato. A revolução doméstica, feminina e pessoal que se dá em cada quadro de Que Horas Ela Volta? acaba por ser mais eloquente e socialmente poderosa que qualquer megafone.