Na primeira segunda-feira de 2015, no dia 5 de janeiro, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) lançou mais uma de suas ações para combater a crise de saneamento de água: a distribuição de dispositivos de torneira para economizar água, com o mote “Se usar bem, ninguém fica sem”.
A estratégia adotada para contornar o problema hídrico continuou sendo a mesma do ano de 2014: apelar para a boa vontade da população, atribuindo a ela, de forma direta ou indireta, parte da culpa pela crise.
Ao longo de todo o ano passado, enquanto os paulistas incluíam as palavras “sistema Cantareira” e “volume morto” em seu vocabulário diário, cada vez mais regiões da capital e do interior paulista passavam a sofrer com a falta sistemática de água. A cidade de Itu, na região metropolitana de Sorocaba, foi um dos casos mais simbólicos.
Mesmo assim, o governador sempre foi resoluto em afirmar que não faltava água no estado. No último debate entre os postulantes ao governo paulista, no início de outubro passado, Alckmin, ainda candidato à reeleição, foi taxativo: “Não falta e nem vai faltar água em São Paulo”. Porém, neste novo ano que começa a notícia é velha. Para evitar o caos no abastecimento de água, o governo tucano decidiu impor uma sobretaxa para forçar a redução do consumo da população.
Se usar bem, ninguém fica sem?
“É importante que fique claro que a responsabilidade pela crise d`água não é da população”, afirma Edson Aparecido da Silva, sociólogo e coordenador da Frente Nacional pelo Saneamento Ambiental.
O especialista é um dos muitos que não possuem dúvida alguma de que o verdadeiro motivo para a crise hídrica em São Paulo não é a falta de consciência da população no uso d’água – que de fato existe -, mas sim porque os sucessivos governadores que passaram pelo Palácio dos Bandeirantes não tomaram as medidas necessárias. “Estamos enfrentando essa crise porque o governo não fez no tempo certo as obras que deveriam ter sido feitas. Ele não iniciou uma campanha de redução de consumo com a antecedência devida”, acrescenta.
Comentando a crise, Rogério Giannini, presidente do SinPsi, afiirmou: “O desperdício principal está nos vazamentos pequenos e grandes que ocorrem no sistema de tubulações. As perdas são estimadas em quase 40% na áre metropolitana de São Paulo e a culpa é da falta de manutenção preventiva. Há também uma falta de cuidado da população em geral que precisa desenvolver uma cultura de uso e reuso da água no cotidiano. Esperamos sair dessa crise (certamente de longa duração) com uma consciência social do uso de um bem que é antes de tudo um direito”, disse.
Na mesma linha de Aparecido, o diretor de base do Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema), José Mairton, afirma que o cenário atual poderia ser outro, caso o governador de São Paulo tivesse decretado o racionamento no início de 2014. “A estiagem prolongada previu a falta de água. Hoje poderíamos ter uma situação menos preocupante. A coordenação da campanha eleitoral do atual governador do PSDB não queria passar uma falha gravíssima de sua gestão anterior, sendo assim, persistiram em um erro que considero um dos maiores golpes políticos já vistos”, avalia.
Mas, na contramão dos fatos, Alckmin nunca assumiu a necessidade de decretar racionamento, pelo menos assim o fez durante todo o ano de 2014 – um ano eleitoral.
De acordo com Edson Aparecido, apesar de o racionamento não ter sido decretado oficialmente, ele já existe desde que a Sabesp começou a fazer redução na pressão da rede durante o período noturno. “Quando uma pessoa chega em casa do trabalho, vai tomar banho, abre a torneira e descobre que a água só virá no dia seguinte, é um racionamento.”
Depoimentos que desmentem o discurso do governador são abundantes. “Aqui falta água faz tempo já, não é verdade que não tem racionamento em São Paulo”, relata o poeta Binho, fundador do Sarau que leva seu nome e morador do Campo Limpo, vizinho ao terminal de ônibus da região. “A gente tem que ficar de plantão o dia inteiro, esperando a água chegar. Aí corre pra encher balde, panela e guardar tudo”, conta a carroceira Dona Rute de Carvalho na favela Godoi, Jardim Umuarama – ambos na capital paulista.
“Em momentos de crise como este, o governo estadual deveria fazer duas coisas além de decretar oficialmente o racionamento: apresentar um ‘pacotão’ de medidas – um plano de contingência para enfrentar esta crise que tende a se aprofundar ao fim do período de chuvas (final de março), e que este pacote fosse precedido de um diálogo com as prefeituras diretamente envolvidas com a crise”, afirma Aparecido, que cita as prefeituras das regiões metropolitanas da capital paulista e de Campinas, junto com os comitês de bacias hidrográficas do Alto Tietê e do PCJ (Piracicapa-Capivari-Jundiaí). “[Mas] o governo do Estado continua em uma linha de ação individual, autoritária, sem transparência e isso tem sido péssimo”, lamenta.
Para ele, é necessária uma conversa com todas as prefeituras – com a ajuda do governo do estado e da Sabesp – para desenvolver um plano para a redução do consumo excessivo de água, além da adoção de medidas como mapear todas as possibilidades de poços artesianos nas regiões e requisitar que o DAEE (Departamento de Águas e Energia Elétrica de São Paulo), que é o responsável pela outorga de utilização de poços, apresentasse, com as respectivas prefeituras envolvidas, uma lista com tais possibilidades, tendo como prioridade o abastecimento humano.
Outras medidas deveriam envolver também dois grandes consumidores de água no estado: os setores agrícola e industrial. Aparecido entende que o governo deveria negociar com ambos a busca por novas tecnologias para utilizar menos água em suas produções, inclusive com incentivos fiscais. “Partindo do princípio que a água tem que usar usada prioritariamente para o abastecimento humano, o governo também tinha que chamar a Fiesp [Federação das Indústrias de São Paulo] e fazer um plano de redução de consumo desse setor”, sugere o especialista.
Perguntado se um decreto de racionamento residencial seria suficiente para aplacar a crise, Aparecido Silva é direto: não.
Segundo dados oficiais do DAEE, o setor industrial utiliza 40% de toda água disponível para abastecimento em rios, poços e reservatórios da Grande São Paulo e Baixada Santista e, como afirmou o geógrafo Wagner Ribeiro, professor titular da Universidade de São Paulo (USP), outras medidas futuras podem começar a ser discutidas, como a presença de indústrias nas regiões metropolitanas, que são áreas de escassez hídrica. “É fundamental reavaliar a conveniência de manter indústrias funcionando aqui”, acredita.
E quanto aos empregos na área industrial? O estudo mais recente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, feito entre os dias 12 e 26 de maio de 2014 com 229 empresas de micro e pequeno porte (até 99 empregados), 140 de médio porte (de 100 a 499 empregados) e 44 de grande porte (500 ou mais empregados), revelou que já foram fechados mais de 3 mil postos de trabalho devido à falta d’água. As demissões decorrem da redução do ritmo da produção e da queda da produtividade das indústrias pela falta do recurso hídrico. A tendência, segundo a Fiesp, é que o quadro se agrave nos próximos meses.
“A situação já estava muito ruim no que diz respeito ao crescimento econômico”, declarou Anicia Pio, gerente de meio ambiente da Fiesp. “Naturalmente, a falta d’água teve uma parcela importante nessas demissões. A escassez de água está levando à redução da produtividade e toda vez que isso acontece é necessário cortar custos, ou seja, demitir o funcionário. A nossa perspectiva é que a nova equipe que vai assumir decrete medidas amargas, mas necessárias para que cause o mínimo de sofrimento a todos os setores”, ponderou.
O estudo ainda apontou que, em cada três empresas, duas estão preocupadas com a possível interrupção no fornecimento de água na região. A possibilidade de racionamento é um fator de preocupação para 67,6% das 413 indústrias entrevistadas pelo Departamento de Pesquisas e Estudos Econômicos (Depecon) da Fiesp.
Anicia defende que o racionamento deveria ser decretado em todos os setores, inclusive para as empresas. “O correto é que a redução seja para todo mundo. As indústrias têm feito a lição de casa nesse sentido. Desde 2007, as empresas que captam água direto dos mananciais tiveram uma redução de mais de 50%. O setor industrial, na região metropolitana, responde por 10,6% de toda a água utilizada em termos de uso direto (rios, águas subterrâneas)”, afirma.
Além do plano de contingência, ela sugere incentivos fiscais para empresas que atuam no segmento de produtos químicos. “Quanto menos água, mais caro fica o tratamento. O governo poderia diminuir ou dar incentivo para a redução dos impostos de produtos químicos, evitando assim que a população seja obrigada a pagar mais caro pela água”, conclui.
De acordo com Aparecido, o governo do estado deveria enviar à Assembleia Legislativa de São Paulo uma lei reduzindo ou isentando de impostos da esfera estadual, como ICMS, equipamentos hidráulicos que possam reduzir o consumo de água para incentivar a indústria e o comércio – com os usuários domésticos substituindo seus equipamentos por outros de baixo consumo.
Outras medidas sugeridas pelo especialista seriam a revisão do calendário de eventos nestes períodos de muito calor, em que se consome muita água; rever o calendário escolar – como campeonatos esportivos, feiras, congressos, a extensão do período de férias de verão e o cancelamento das férias de inverno, além de um controle maior para que todas as administrações, tanto estadual quanto municipal, reduzissem o uso de água na lavagem de equipamentos públicos e rega de jardins, por exemplo.
Em 1994, a Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) se tornou uma empresa de capital misto com o argumento de que vendendo parte de suas ações seria possível arrecadar mais recursos para investir na sua função: saneamento básico e abastecimento de água.
Passados 20 anos, a empresa viu seu faturamento saltar de R$ 6 bilhões para R$ 17,1 bilhões entre 2002 e 2012. A quantia nada modesta seria mais do que o suficiente para ampliar a rede de captação e saneamento, evitando assim qualquer problema relacionado à escassez de água. Enquanto parte da população da região metropolitana vê as torneiras secas há meses, os acionistas da Sabesp têm um faturamento nada escasso.
Diante da lógica da maximização dos lucros, a companhia não tomou as medidas necessárias para conter a crise já em 2013, quando o nível dos reservatórios estava baixando. Políticas de racionamento, com penalização de quem desperdiçasse água, e de informação não foram feitas, como explica Anderson Guahy, técnico em gestão da Sabesp e diretor de formação do Sintaema.
“Em vez de a empresa buscar a universalização do saneamento, levar saneamento e saúde para toda a população do estado, ter feito a manutenção das redes de água, ela vem atuando no sentido de garantir lucros cada vez maiores para seus acionistas. No que diz respeito à Sabesp, a responsabilidade pela crise deve ser direcionada à alta gestão e não aos trabalhadores concursados que vêm sendo perseguidos nos últimos meses”, diz Guahy.
Anicia Pio sugere dois blocos de ações que deveriam ter sido executados: obras e transparência. “Desde 2004 o governo sabia da necessidade de investir no sistema de abastecimento da Grande São Paulo, mas nada foi feito. Ao mesmo tempo, faltou autoridade e competência para chegar à população através da mídia e explicar a gravidade da situação”, afirma. O caso de 2004 a qual ela se refere é a outorga que autorizava a Sabesp a retirar água do Sistema Cantareira e fornecê-la para oito milhões de pessoas na capital paulista e na região metropolitana, ação que já constava entre as diretrizes para reduzir a demanda, pois o sistema poderia não suportar uma situação como a atual.
“E a Sabesp ainda não apresentou nenhum plano para a redução da perda de água, ou seja, continua perdendo um terço da água ainda na distribuição”, argumenta Aparecido. O especialista afirma que seria importante que ela interrompesse o pagamento de dividendos ou de juros sobre o capital próprio para os seus acionistas.
Em meio à pior crise enfrentada pelo Estado mais rico do Brasil, que possui a maior cidade da América Latina em um país “abençoado” por inúmeros recursos hídricos em seu território, os acionistas podem comemorar o ano que passou: somente em 2014, a Sabesp captou aproximadamente R$ 800 milhões. A população paga a conta.