A especialista Marilene Proença fala sobre o diagnóstico do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade e a questão da medicalização
O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) sustenta polêmicas das mais diversas. Primeiro: como se pode afirmar que indivíduos, essencialmente crianças, com comportamento agitado ou displicente são acometidas por um transtorno, sem considerar uma análise mais profunda que leve em conta a faixa etária, o contexto social e mesmo o grau de desenvolvimento condizente à infância?
O NET Educação convidou a especialista Marilene Proença, professora da área de Psicologia Escolar, coordenadora do Laboratório Interinstitucional de Estudos e Pesquisas em Psicologia Escolar (LIEPPE) e do programa de Pós Graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano da Universidade de São Paulo (USP) para esclarecer as questões que giram em torno do Transtorno.
A especialista aponta que há muita imprecisão nos diagnósticos, uma vez que os critérios de avaliação são subjetivos e, por conta disso, condena a medicação prescrita em grande parte dos casos: “a medicalização cria uma falsa facilitação de conduta nessas crianças”. Confira a entrevista na íntegra.
NET EDUCAÇÃO – O que é o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH)?
Marilene Proença – De início, temos aqui uma polêmica. Toda e qualquer tentativa de definição do Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade é feita baseada em sintomas, ou seja, em comportamentos manifestados em determinados contextos. O suposto transtorno é descrito na sua sintomatologia pela Associação de Psiquiatria Norte Americana por meio do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV) que se restringe ao trabalho de listar determinados sintomas escolhidos como aqueles que o constituirão. Isso gera muita discussão. Por exemplo, quando se está diante de uma doença de cunho genético, caso da síndrome de Down, se tem certeza que há uma disfunção do cromossomo 21 e, por isso, são atestados determinados sintomas no paciente.
Agora, quando se trata do Déficit de Atenção e Hiperatividade, a verdade é que não há consenso sobre os sintomas que poderiam justificar o transtorno. Há mais de um século se pergunta o que comporia essa modalidade de transtorno, tendo a sua definição modificada tanto no nome do suposto transtorno quanto nas características de comportamento que levariam a diagnosticá-lo.
Hoje, o que os psicólogos e psiquiatras têm utilizado largamente para realizar o diagnóstico é o SNAP-IV, um questionário baseado nos sintomas apresentados pelo DSM-IV, para sinalizar a existência do TDA e da Hiperatividade. São 18 questões, nove direcionadas para a sondagem do déficit de atenção e outras nove para a hiperatividade, avaliadas de acordo com os seguintes critérios: “nem um pouco, só um pouco, bastante ou demais”.
Se a criança ou adolescente for enquadrado em seis questões como “bastante ou demais”, em duas situações de vida, já pode ser diagnosticado como portador do transtorno ou da hiperatividade. No entanto, as questões são respondidas por adultos e permitem alto grau de subjetividade nas respostas. Vou exemplificar com uma delas. Um dos itens do questionário diz o seguinte: a criança ou adolescente “Perde coisas necessárias para atividades (ex: brinquedos, deveres da escola, lápis ou livros)”?. O que é pouco, bastante ou demais, nesse caso? Além disso, qual de nós não passa por situações de esquecimento diariamente? Ou seja, as perguntas são genéricas, não consideram o contexto em que os comportamentos estão sendo avaliados, tampouco a idade da criança avaliada.
Em Psicologia, por exemplo, um questionário como esse não pode ser considerado como um instrumento de avaliação psicológica, pois para se avaliar um determinado comportamento será necessário utilizar vários instrumentos diagnósticos, considerando-se fatores essenciais como faixa etária, contexto social, diferentes versões sobre o caso, delimitando melhor o que se pretende avaliar.
NE – O Transtorno do Déficit de Atenção é sempre somado à hiperatividade ou podem acontecer de maneira isolada?
MP – Embora haja uma tendência de se acoplar as duas modalidades, segundo seus defensores, o transtorno pode ocorrer sem a hiperatividade e vice-versa.
NE – O TDAH não é doença?
MP – Partindo das evidências que são consideradas como critérios para a existência do TDAH, não podemos afirmar que seja uma doença, pois tais evidências são baseadas em comportamentos e estes se modificam à medida que o contexto, as relações, as situações e oportunidades se apresentam na vida de crianças, adolescentes e adultos.
NE – Como avaliar a questão da medicalização para o TDAH?
MP – Quando a criança, adolescente ou adulto é diagnosticado com o transtorno é prescrita uma droga “tarja-preta”, com graves efeitos colaterais, denominada metilfenidato, substância mais conhecida pelos nomes comerciais de Ritalina, Concerta e Vyvanse.
O metilfenidato é do grupo dos psicoestimulantes, ou seja, atua diretamente sob o sistema nervoso central. O medicamento libera maior quantidade de dopamina no organismo, uma das moléculas essenciais de sinalização do cérebro, associada à motivação e aos sentimentos de prazer. Quando prescrito para pessoas com o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), a substância tem efeito calmante, fruto da toxicidade da medicação.
A ação do metilfenidato no organismo pode durar de quatro a doze horas, pois já se encontram versões do medicamento com efeito prolongado no organismo. O medicamento traz na própria bula a não recomendação para crianças antes de sete ou oito anos de idade. No entanto, a realidade da prescrição médica é outra. A medicação é prescrita para crianças muito pequenas, podendo trazer efeitos graves ao desenvolvimento.
Então, a falsa ideia de que a criança melhorou o comportamento por conta da substância é pelo simples fato dela estar com excesso de dopamina nas sinapses, o que dá uma sensação de saciedade do prazer. Esta droga pode apresentar graves efeitos colaterais tais como: perda de apetite, sonolência, taquicardia, dores no corpo e cabeça. De fato, a criança não apresenta nenhuma “melhora” no comportamento e sim sintomas do efeito do medicamento no organismo.
NE – Por que a tendência a medicar os casos de TDAH?
MP – Não podemos mascarar a forte pressão exercida pelos laboratórios farmacêuticos. Há um livro muito importante sobre o tema lançado há alguns anos nos Estados Unidos denunciando o marketing desenvolvido pela indústria farmacêutica assinado pela pesquisadora Marcia Angell. Os diagnósticos com medicação ganham força a partir do momento que a indústria farmacêutica endossa o medicamento como a saída para o problema, financiando, inclusive, pesquisas.
Temos a ideia de que as crianças têm que aprender a se comportar e esquecemos que para que isso ocorra é necessário ensiná-las. O comportamento é uma dimensão do desenvolvimento infantil que é aprendida, como tantas outras. O medicamento realmente vai trazer uma série de pontos positivos se a ideia for controlar os impulsos da criança. Mas a boa conduta ou comportamento aparente esconde os fortes malefícios da substância ingerida. A facilitação que se pretende a partir da medicação é uma falsa facilitação e leva à distorção do processo de aprendizagem de uma criança, do qual precisamos (nós, adultos) sermos mediadores.
Precisamos apoiar as crianças na convivência diária, orientando-as frente aos desafios, ensinando-as a como crescer, desenvolver-se e defender-se. A partir do momento que um medicamento interfere no comportamento, não está contribuindo para a aprendizagem. O que precisamos nos questionar é: que educação estamos oferecendo às novas gerações quando usamos a contenção química? Como aprenderão a lidar com os desafios da vida diária? Estamos alarmados com essa onda medicalizante. Grande parte do conhecimento da Psicologia centra-se nas teorias de aprendizagem e de desenvolvimento demonstrando que somos o que aprendemos.
E o que aprendemos ao tomar um medicamento para pretensamente focarmos a atenção e reduzirmos as ações motoras de uma criança?
NE – Os indivíduos vêm, cada vez mais, recebendo estímulos das mais diversas naturezas. Estamos conectados em grande parte do tempo a mais de uma fonte de informação. O próprio ambiente não pode então estimular o déficit de atenção e a hiperatividade? Como avalia esse cenário?
MP – Não podemos dizer que por termos muitos estímulos o tempo todos estamos sendo estimulados ao transtorno, mas sim a constituirmos uma atenção difusa. Hoje, cada vez menos se tem a atenção direcionada a uma única coisa. A comunicação estabeleceu novas maneiras de nos relacionarmos. Somos estimulados de diversas maneiras e isso não é uma patologia social. Por isso, não vejo isso com olhar para doença ou transtorno. São novas maneiras de relacionamento que estão postas para nós diariamente.
NE – Pais e professores têm de estar atentos a essa questão?
MP – Sim. O envolvimento e a participação dos pais e dos educadores é de extrema importância. Antes de tudo, precisamos romper com o círculo de culpabilização entre pais e educadores. A questão é: que criança queremos formar? Para que sociedade? Aquela em que somos todos iguais com comportamentos padronizados? Ou crianças criativas, desejosas do saber, instigadas pelo novo e pela diversidade? Quando uniformizamos o comportamento humano deixamos de construir nossa humanidade.
O adulto precisa assumir o seu papel de educador, de mediador entre a criança e a cultura, apresentando à criança o que há de melhor no seu contexto social. As crianças aprendem aquilo que apresentamos a elas como oportunidades. À medida que alçam autonomia podem trilhar novos caminhos e buscar outras fontes de informação. Não podemos deixar que os problemas humanos sejam apaziguados com medicamentos simplesmente. Temos que enfrentá-los e superá-los com os recursos que desenvolvemos nas áreas do saber e na prática social.