Em 2012 a profissão de psicólogo (a) comemorou 50 anos de regulamentação no Brasil. A depender do ponto de vista, parece pouco ou muito. São cinco longas décadas de acúmulo sistemático de saberes e práticas, refletidos na ampliação dos espaços de atuação na sociedade. Por outro lado, considerando a natureza da Psicologia, uma ciência voltada à promoção da saúde mental das pessoas e, ainda, a velocidade das transformações sociais ocorridas nessas últimas décadas, é de se supor que não alcance o patamar de uma ciência “acabada”, pois na medida em que ser humano e sociedade se transformam, a ciência psicológica também o faz, para acompanhar tais processos de mudança sociocultural.
É um equívoco pensar que a Psicologia se basta com seus pensadores clássicos. Todo e qualquer conhecimento está circunscrito ao contexto social e ao momento histórico em que é produzido, trazendo tais marcas em seus conteúdos e premissas. A maioria dos teóricos da Psicologia ensinados nas universidades, é de origem europeia ou estadunidense, tendo realizado seus estudos em séculos passados. Isto acarreta algumas dificuldades, pois muitas vezes busca-se “enquadrar” a realidade brasileira naqueles padrões, na falta de outros referenciais mais adequados. Na direção oposta tem sido, por exemplo, o esforço da ULAPSI (União Latino-Americana das Entidades de Psicologia) em fomentar o desenvolvimento de uma Psicologia produzida na América Latina, com base nos problemas e características das populações de nossa região.
Uma dessas características, que apesar de pouco falada não passa despercebida para qualquer cidadão (ã), é o caráter pluriétnico da nossa população. Em todos os países latino-americanos encontramos diversos povos indígenas originários, que aqui estavam antes da chegada dos europeus, e no Brasil não é diferente. Diferenças culturais à parte, o que há de comum entre esses países é a história de dominação dos povos originários, explorados inicialmente pelos europeus e, em seguida, pelos colonos que optaram por permanecer na região. Dominação realizada, muitas vezes, de forma brutal, por meio de assassinatos de toda espécie, genocídios de populações inteiras e usurpação de territórios; mas também de forma sutil, utilizando a ideologia, a religião ou a educação formal de crianças e jovens indígenas nas escolas “de branco”. No Brasil, a mentalidade dos nossos governantes, até a década de 80, era a de que os indígenas deveriam ser eliminados, extintos, assimilados culturalmente à sociedade nacional, deixando de serem índios para “não atrapalhar o progresso”.
Essa fórmula não funcionou. Nem o “progresso” foi eficaz, já que o modelo de desenvolvimento adotado produziu consequências nefastas como a destruição de áreas naturais de forma predatória, desequilíbrio ecológico e poluições de todo tipo, consumismo irresponsável, crise de valores a partir da valorização de bens materiais acima da pessoa humana, desigualdade social acentuada, descompromisso do Estado com o bem estar social, violências, etc. e etc. Nem os indígenas se submeteram à condição que lhes havia sido destinada.
A novidade da década de 80 foi a elaboração e promulgação da atual Constituição Federal, considerada “Constituição Cidadã” em função da intensa participação social no processo constituinte, inclusive de organizações indígenas, as quais puderam garantir a inclusão de artigos importantes para um reordenamento social na relação intercultural entre índios e não-índios. A lei hoje garante o direito das comunidades indígenas sobre seus territórios originais, o respeito à cultura tradicional, o direito à educação bilíngue e também à participação política dos mesmos na definição das políticas públicas de seu interesse. Muito apropriado. No entanto, apesar de serem leis federais, na prática os direitos dessas populações não têm sido respeitados e o Estado não tem realizado seu papel como espera a sociedade. Em muitas circunstâncias os agentes públicos se colocam a serviço dos setores que continuam com aquela mesma mentalidade predatória e gananciosa, à custa de inúmeras vidas e muito sofrimento.
É no final de 2004 que um grupo de caciques procura o Conselho Federal de Psicologia solicitando ajuda. Partindo do entendimento que “para doença de branco índio não tem solução sozinho”, buscam junto aos (às) psicólogos (as) estabelecer alianças que resultem no enfrentamento dos prejuízos decorrentes da relação predatória da sociedade envolvente junto às comunidades indígenas. Encontros foram realizados e desde então, o Conselho Regional de Psicologia de São Paulo vem aproximando psicólogos (as), lideranças indígenas e profissionais de áreas afins, para definir conjuntamente parâmetros para políticas públicas de interesse dessas populações. Desse diálogo já se produziu uma publicação, cuja versão digital encontra-se disponível no site do CRP SP (http://www.crpsp.org.br/povos/povos/livro.pdf), além da introdução da temática em diversos cursos de Psicologia no estado.
Onde houver sofrimento humano, injustiças, violação de direitos e a consequente perspectiva de fortalecimento das pessoas para melhor enfrentamento dessas realidades, ali estará a Psicologia. Uma ciência que carrega suas contradições, mas uma profissão sempre aberta às demandas que surgem na sociedade. Aberta também a novas estratégias e possibilidades de interface com outras ciências, como no caso a Antropologia, o Direito, o Serviço Social, a Educação, as ciências humanas e da saúde em geral.
Diferente de uma visão estereotipada promovida pelos meios de comunicação, o (a) psicólogo (a) não atua apenas em consultório nem direciona seu trabalho apenas ao campo da “loucura”. São muitas as suas áreas de atuação e, no caso dos indígenas, também são diversas as possibilidades de contribuição. Promover saúde mental tem um significado amplo, pois entendemos que tal estado depende de condições pessoais, mas também sociais. Para qualquer população. Com relação aos indígenas, há muito que fazer “na sociedade”, para superação dos preconceitos e relações perversas, por exemplo, ampliar esse debate para esclarecimento da opinião pública fazendo uso dos canais de informação ao nosso alcance. E, “com os indígenas”, construir conhecimentos compartilhados para intervenções responsáveis, que não reproduzam, mais uma vez, relações de dominação cultural. Há demandas em saúde mental, educação, cultura, questões ligadas ao uso de substâncias psicoativas, identidade, visibilidade social, participação, formação acadêmica, políticas públicas, todas expressando as consequências de cinco séculos de dominação, a qual definitivamente precisamos superar, em respeito a todos esses povos e à Constituição Federal.
Dados do último censo do IBGE nos ajudam a compreender a atual composição da sociedade brasileira, o que pode parecer surpreendente para muitas pessoas: existem hoje no Brasil 305 etnias, falando 274 línguas! Dos cerca de 5 milhões de indivíduos da população originária inicial, existe hoje menos de um milhão. Este número já foi menor, mas nos últimos 20 anos a população indígena brasileira tem aumentado, especialmente nas áreas onde a demarcação do território foi homologada e eles podem viver respeitando sua cultura e tradição.
Aqui reside uma importante fonte de incompreensão do modo de ser indígena: a questão da terra. Se para boa parte dos não-indígenas, impera a visão da terra enquanto uma mercadoria que se compra e vende como outra qualquer, e cujo valor está associado aos seu potencial produtivo (fertilidade, recursos minerais, hídricos, etc), para muitos indígenas o território esta carregado de significados que não se limitam ao seu valor monetário. É um bem coletivo, onde vivem muitas espécies além da humana, que devem ser respeitadas, e onde se pode viver com plenitude a dimensão espiritual da vida. O território ancestral é território da memória de um povo, lugar privilegiado de sua reprodução cultural e de transmissão dos saberes aos mais novos. Nesse sentido, muitas vezes a terra é vivida como um espaço sagrado que concretiza a unidade entre todos os seres e contém em si o tempo da vida e da morte.
Concluindo: há um importante jogo de forças político-econômicas em nossa sociedade, produzindo injustiças e sofrimento a centenas de milhares de cidadãos indígenas. De outro lado, estas mesmas forças realimentam alienação e descompromisso da sociedade em geral, manipulando informações e canais de comunicação de largo alcance, anestesiando corpos e mentes para o confronto. Compromisso social, da saúde e da emancipação do ser humano: a Psicologia tem tudo a ver com isso!!