Benefício de R$ 1.350 por mês afeta tratamento humanizado e é visto como uso do desespero das famílias para política duvidosa que pode resultar em manipulação e transformar dependência em mercado
São Paulo – Militantes e especialistas em saúde mental consideram um novo retrocesso contra o tratamento humanizado a proposta do governo Geraldo Alckmin (PSDB) de conceder bolsas no valor de R$ 1.350 mensais, exclusivas para custeio do tratamento de dependentes químicos em comunidades terapêuticas privadas. Para os entrevistados, a proposta é obscura e pode fomentar um mercado de tratamento da dependência química, além de servir a interesses políticos. O Cartão Recomeço, que já está sendo chamado de “bolsa-crack”, será lançado oficialmente amanhã (9) pelo governo estadual.
O benefício será concedido por um período de seis meses e deverá estar disponível em 60 dias. Não será possível sacar o benefício e o cartão será aceito apenas em entidades cadastradas. A proposta inicial é atender a 3 mil dependentes químicos maiores de 18 anos, que não conseguem atendimento devido à falta de leitos e equipamentos ocorrida após o início dos trabalhos do Centro de Referência em Álcool e Drogas (Cratod), em janeiro deste ano. Segundo a Secretaria de Assistência Social, as entidades serão escolhidas por capacidade técnica e regularidade de funcionamento, cujos parâmetros serão definidos em edital que será lançado nos próximos dias.
O conselheiro administrativo do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, Joari Carvalho, chama atenção para a falta de clareza da proposta. “Não se sabe nada além do fato de que haverá um auxílio financeiro. Quais serão as diretrizes de tratamento? Quais serão os critérios para selecionar as entidades e os pacientes? No início do ano não havia verba destinada para isso no orçamento. E agora surgiu como política do governo estadual”, analisa. Ele afirmou, também, que os conselhos estaduais de saúde e políticas sobre drogas não foram consultados sobre a proposta.
Carvalho teme a manipulação das pessoas para benefício de grupos políticos. “Está se usando o clamor social e o desespero das famílias para estabelecer uma ação duvidosa, tanto no tratamento como na questão do controle social e da fiscalização do dinheiro que será aplicado. Já existem denúncias, Brasil afora, da associação destas entidades a parlamentares que defendem a internação compulsória”, pondera. E questiona o direcionamento de recursos para instituições privadas. “Temos políticas públicas para atender a população com problemas de dependência química. No entanto, elas não têm recebido investimento adequado. Mas dinheiro, nota-se que tem”, pondera.
O presidente do Sindicato dos Psicólogos do Estado de São Paulo, Rogério Giannini, avalia que a proposta é mais um passo atrás em um trajeto iniciado com as internações compulsórias. “É uma prática manicomial. No geral, essas comunidades não contam com atenção clínica ou grupos multidisciplinares, que é um princípio básico de atendimento estabelecido no âmbito do Sistema Único de Sáude (SUS). É simplesmente o isolamento e a abstinência forçados”, afirma. Segundo Giannini, existem muitas denúncias sobre trabalho forçado, práticas de esgotamento, como ocupação contínua e horários extasiantes, relacionadas a tais comunidades.
Giannini defende o fortalecimento de ações preconizadas no SUS, como atendimento multidisciplinar, Centros de Atenção Psicossocial (Caps), hospitais-dia, entre outros. Além disso, explica que o isolamento não deveria ser estimulado, pois “questões psíquicas e de drogadição são sociais e não individuais”. E faz um alerta: “Instituir a bolsa pode incentivar as famílias a buscar a internação, como se fosse a única solução, fazendo com que o tratamento se torne um mercado, desestimulando ainda mais o desenvolvimento de políticas públicas”, avalia.
Para eles, há uma tentativa de confundir a comunidade terapêutica com a residência terapêutica. “As residências terapêuticas são utilizadas somente em casos extremos e propõe socialização, grupos de trabalho multidisciplinar, redução de danos e prática autogestionária que traz o dependente para o centro do tratamento, como parte dele.” Por outro lado, as comunidades “propõem um tratamento religioso, baseado em orações e ocupação contínua, onde a participação de profissionais de saúde não é aceita”. Ambos concordam que o problema não é a existência das comunidades, mas o direcionamento de verba pública para fomentar o tratamento privado e sem relação com o SUS.
O governo estadual informou que a iniciativa busca ampliar os locais de tratamento e a oferta de vagas para os dependentes químicos. O programa será gerido por um grupo de trabalho coordenado pelo professor titular do departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Ronaldo Laranjeira. Nesta primeira fase, a gestão Alckmin vai cadastrar entidades que prestam serviço de internação em 11 municípios: Diadema, Sorocaba, Campinas, Bauru, São José do Rio Preto, Ribeirão Preto, Presidente Prudente, São José dos Campos, Osasco, Santos e Mogi das Cruzes.