Quando a gestão pública prioriza programas preventivos, melhora a qualidade de vida e diminui a necessidade de despesas com construção e custeio de hospitais
Toda semana, o aposentado Geraldo Cristino Assunção, 63 anos, mais conhecido como Tiago, junta-se a outros usuários de uma Unidade Básica de Saúde (UBS) no bairro Cruzeiro do Sul, em Betim (MG), para aprender técnicas de Lian Gong, ginástica chinesa famosa por proporcionar relaxamento e melhorar a concentração. “Aqui a gente trata doenças e aprende a manter a saúde”, diz. Tiago utiliza outros serviços especializados oferecidos na cidade, como oftalmologia, onde controla o glaucoma descoberto há três meses. E faz parte da ampla maioria da população de Betim que tem no atendimento público o seu “convênio médico”.
Para o aposentado, ainda há muito a ser melhorado, como o tempo de espera por consultas e exames de rotina, que demora de um a dois meses. Mas os avanços já são sentidos. Um deles é o controle social da saúde. Integrante do Conselho Municipal de Saúde, Tiago conta que depois de muito tempo o órgão finalmente passou a exercer sua função consultiva e deliberativa. Outro avanço é mais objetivo: a redução na taxa de mortalidade infantil. De 2009 para 2011, o número de óbitos de crianças com menos de 1 ano, para cada mil nascidas vivas, caiu de 13,8 para 10,2. A média brasileira é 15,6, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
“A queda resultou de diversas ações integradas a estratégias da saúde da família”, resume o fisioterapeuta Wendel Teodoro, coordenador do Serviço Municipal de Atenção Básica. Há três anos a cidade tinha 39 equipes do Programa Saúde da Família (PSF). Hoje são 66, mais as 26 equipes de saúde bucal. O serviço alcança 60% da população. A meta, segundo ele, é 100%. Os mais de 800 agentes comunitários de saúde, todos concursados e vinculados diretamente à administração pública, são apoiados por médicos e profissionais de enfermagem das 34 UBS e por psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, fonoaudiólogos e educadores físicos dos quatro Núcleos de Atenção à Saúde da Família (Nasf), como preconiza o Ministério da Saúde (MS).
Esses agentes acompanham de perto idosos, crianças, gestantes, pessoas com doenças crônicas, como diabetes e pressão alta, e atuam na prevenção e no combate a problemas como a obesidade, especialmente na infância, para evitar as sérias complicações, como as cardíacas. A monitoração da saúde mental também tem a ajuda do PSF, que segue diretrizes de psiquiatras e psicólogos de UBS de referência.
A ideia é administrar no âmbito do posto de saúde os casos menos complexos para não sobrecarregar os centros especializados, que devem estar desafogados para agir adequadamente nas situações mais críticas. O trabalho está articulado aos demais serviços de atendimento especializado de médias e altas complexidades em quatro Unidades de Atendimento Imediato (UAI) – que funcionam nos moldes de Unidades de Pronto Atendimento (UPA) –, um centro de referência em reabilitação física com mais de 300 atendimentos diários, pronto-socorro em saúde bucal 24 horas, um hospital, que atende toda a região, e uma maternidade.
Está prevista a construção de um novo hospital com recursos municipais e do Ministério da Saúde. Para reduzir a fila para cirurgias mais comuns, o município firmou convênio emergencial com unidades particulares, cujos procedimentos são autorizados e supervisionados pela Secretaria de Saúde. E, por meio do Consórcio Intermunicipal de Saúde do Médio Paraopeba, a cidade aumentou o atendimento e cirurgias oftalmológicas.
Antecipar-se às emergências
Vencedora do prêmio InovaSUS, de valorização de boas práticas e inovação na gestão do trabalho na saúde, Betim, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, é uma das cidades brasileiras que priorizam a atenção básica para melhorar a saúde como um todo.
Segundo especialistas, a prioridade é acertada porque, além de mais barato, esse nível de atendimento permite a educação em saúde para a prevenção e o tratamento e controle de 90% dos problemas mais comuns, como pressão alta, diabetes e distúrbios respiratórios. Se não forem combatidos no início, trarão complicações que vão sobrecarregar os serviços destinados a casos mais complexos, como infarto, acidentes graves e outras emergências.
“Infelizmente muitos profissionais e gestores ainda não valorizam esses procedimentos aparentemente simples, mas capazes de promover grandes mudanças na saúde de toda a população”, aponta a médica Ana Maria Costa, presidenta do Centro Brasileiro de Pesquisa de Saúde (Cebes). Indicadores do quanto ainda é preciso avançar em atenção básica vêm do Ministério da Saúde. O Brasil tem 31 mil equipes de Saúde da Família, 234 mil agentes comunitários e 19 mil equipes de saúde bucal. No entanto, nos cerca de 5 mil municípios que oferecem o serviço, só metade da população é beneficiada. Além disso, um levantamento do MS mostra que, entre todos os prédios das UBS do país, 65% estão totalmente inadequados.
“Base do atendimento à população, onde são aplicadas vacinas e feitas consultas, inclusive de pré-natal, esses espaços deveriam também ser mais bem-cuidados, mais bonitos”, avalia Aparecida Linhares Pimenta, vice-presidenta do Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde (Conasems).
Ana Maria Costa ressalta que, de maneira complementar a esse atendimento básico, os municípios devem manter um conjunto de ações e de profissionais mais especializados. “Uma pessoa que está sendo monitorada pelo Saúde da Família e tem o diabete descompensado, por exemplo, necessita dos cuidados de um cardiologista, um endocrinologista e um oftalmologista, que vão acompanhar as complicações que agora deixaram de ser responsabilidade da atenção primária”, aponta a presidenta do Cebes.
Para casos de doenças do coração, câncer, entre outros mais complexos, é necessária uma retaguarda de hospitais equipados para procedimentos mais sofisticados. E, mediando tudo isso, serviços de urgências e emergências, ou seja, que respondem pelo atendimento imediato. “O resultado de um exame pedido pelo médico não pode demorar três meses para ficar pronto. A doença avança, a situação piora”, diz Ana Maria. “É o mesmo caso de uma pessoa que tem a pressão sanguínea descontrolada. Ela não pode esperar dois meses por uma consulta. Tem de ser no dia seguinte, ou no mesmo, de preferência.”
Médicos em falta
No entanto, a saúde de qualidade à qual a população tem direito depende da solução de problemas nem sempre fáceis de resolver. Um deles é a falta de médicos – mal comum em todos os municípios, inclusive naqueles que priorizam o setor –, que na maioria das vezes está por trás das longas filas para o atendimento. Em Diadema (SP), 97% da população é coberta pelo PSF, 75% das gestantes fazem mais de sete consultas de pré-natal, conforme recomenda a Organização Mundial da Saúde, e há programa reconhecido externamente pelo combate à tuberculose. Para isso o município reserva o dobro do percentual determinado por lei para investimento no setor.
Um dos gargalos ali é justamente a falta de médicos. “A disputa por esses profissionais, pelas redes pública e particular, explica a dificuldade para contratá-los, especialmente para atender em postos de saúde e prontos-socorros das periferias das grandes cidades e de regiões longínquas”, explica Aparecida Pimenta, que é também gestora da saúde em Diadema. Segundo ela, em outros países com sistema universal como o brasileiro há três médicos para mil habitantes. No Brasil, a proporção é de 1,8. “Sem médicos na atenção básica, a população acaba sobrecarregando as UPA, onde eles também são insuficientes. Isso aumenta ainda mais o tempo de espera.”
O problema é tão sério que o governo federal estuda medidas para atrair mais profissionais para o sistema público, como flexibilização das regras para a revalidação de diplomas de médicos formados em outros países e incentivos no custeio da graduação para aqueles que forem trabalhar no SUS depois de formados. Ana Maria, do Cebes, diz que muitos municípios, para conseguir contratar, oferecem altos salários e benefícios. “Isso leva à falta de vínculos permanentes, sem nenhuma vantagem para a população atendida.”
Financiamento
Os gestores da saúde convivem ainda com outro mal, crônico: o subfinanciamento do setor. Pela lei, os estados devem investir no mínimo 12%, e os municípios, pelo menos 15%. Já a União, conforme regulamentação recente, o montante aplicado no ano anterior mais a variação do Produto Interno Bruto (PIB). Em percentuais, isso equivale a 3,8% do PIB, muito aquém dos 10% pleiteados pelos movimentos em defesa da saúde pública. Tão insuficiente quanto o investimento federal é o estadual. No caso de Diadema, corresponde a 1% do que a cidade gasta para compra de medicamentos. “Os estados não aplicam os 12%. Em geral, cobrem as despesas da rede própria de hospitais e não investem em novas construções”, diz Aparecida.
A superlotação de hospitais referência no tratamento de doenças complexas, como Hospital das Clínicas, Dante Pazzanese, Instituto do Coração e Hospital São Paulo, na capital paulista, evidencia a necessidade de novas unidades semelhantes em outras regiões carentes de atendimento. O financiamento insuficiente, como lembra Ana Maria Costa, é agravado por políticas equivocadas que dão votos, mas não compreendem a saúde como fator de desenvolvimento. Como diz, o cidadão deve refletir sobre os compromissos do seu candidato. “Se ele prometer pintar o centro de saúde, dar convênio privado aos servidores, criar fundação para modernizar a gestão de hospitais, na verdade ele nada entende das necessidades da saúde pública”, diz. “Se entendesse, defenderia a ampliação do acesso de todos a todos os serviços, mais profissionais para a área, maior participação popular na gestão do sistema e, principalmente, recursos financeiros.”
Controle social faz bem à saúde
Propor, discutir, acompanhar, deliberar, avaliar e fiscalizar políticas e ações no setor são atribuições dos conselhos municipais, estaduais e nacional de saúde. Sua composição deve respeitar a proporção de 50% de representantes dos usuários do sistema, 25% de trabalhadores de saúde e 25% de gestores e prestadores de serviços privados conveniados. Caso contrário, estados e municípios não poderão receber repasses do Ministério da Saúde, conforme determina o Tribunal de Contas da União.
“Os conselhos são importantes porque integram gestores, usuários e trabalhadores no planejamento e gestão da saúde pública”, diz o conselheiro nacional Abrahão Nunes da Silva, integrante da Central de Movimentos Populares e representante dos usuários no Conselho Nacional de Saúde (CNS). “Isso é excelente, mas os conselheiros não estão preparados como deveriam e são pressionados por gestores, planos de saúde e outros setores, deixando de cumprir seu papel de defender o interesse dos usuários, em especial os mais pobres.”
Além do pleno exercício de suas atribuições, os conselheiros lutam por mais recursos para a saúde. Junto com outros segmentos em defesa do setor, os conselhos estão envolvidos numa campanha nacional de coleta de assinaturas para um projeto de lei de iniciativa popular que obriga a União a investir 10% do PIB no Sistema Único de Saúde. O percentual era fixado pela lei complementar 141, mas foi vetado pela presidenta Dilma Rousseff. Existem hoje no país 5.565 conselhos municipais, 26 estaduais, um do Distrito Federal e 36 distritais de saúde indígena – ou seja, um para cada município e outro para cada unidade federativa.