Anielle Silva fala da infância, militância e do legado que a vereadora morta deixou para mulheres, negros e moradores de favela
Aos 11, Marielle Silva começou a cuidar da irmã cinco anos mais nova, enquanto os pais trabalhavam. Ela defendia a caçula, única menina do conjunto habitacional onde moravam a gostar de vôlei. A bola, porém, lhe era negada pelos rapazes. Marielle não aceitava que fosse assim. Brigava, tomava a bola. “Ela dizia: ‘se minha irmã não pode jogar, ninguém mais vai'”, conta Anielle Silva, em entrevista à Carta Capital.
Quando começou a se destacar na militância política, sua atuação ganhou admiração de amigos e moradores do Complexo da Maré, onde viveu sua infância, adolescência e parte da vida adulta. “O pessoal fez a campanha, subiam, desciam pela favela, era muito bem vista pelos amigos, tinham muito orgulho dela”.
A vereadora carioca do PSOL, morta na noite do dia 14, deixou um legado “para as mulheres negras, para os favelados, para todo mundo. Ela não vai ser esquecida”, afirma sua irmã
Carta Capital: Quem era a Marielle?
Anielle Silva: Uma mãe dedicada, uma filha dedicada, irmã muito parceira. Madrinha da minha filha, dinda que estava sempre presente mesmo com a agenda lotada. Ela era muito batalhadora, odiava ver injustiça, maldade, ignorância, intolerância. Mesmo antes de ser vereadora ela falava quando via algo que não gostasse e que poderia mudar. Ela gostava muito de funk. Tinha sempre um sorrisão no rosto. A marca dela era o sorriso. Era muito espalhafatosa, muito faladeira, muito marrenta. Batalhadora e guerreira são adjetivos que a definem bem.
CC: Como foi infância na Maré e como era a relação de vocês?
AS: Nós morávamos no Conjunto Esperança, que é a primeira parte da Maré. Minha irmã sempre foi muito esperta. Minha mãe trabalhava fora e era a Marielle que ia às minhas reuniões na escola. A partir de 11 anos, minha mãe me deixava com ela. Eu tinha de cinco para seis anos. Sempre fomos muito próximas, não éramos de brigar muito. Uma usava a roupa da outra, aquela coisa de menina. Nossa infância foi muito boa, passeávamos muito. Desde muito pequenas, todo domingo íamos à casa dos avós, íamos à missa.
CC: A família de vocês é muito católica, ela também era?
AS: Minha mãe era muito católica, muito devota, então ela passou isso para nós desde que éramos muito novas. A gente fez batizado, primeira comunhão, crisma, e Marielle virou uma catequista de ponta dentro da Maré. Quando ela começou a trabalhar com o Marcelo Freixo, começou a ter contato com outros líderes religiosos, então por conta disso frequentou e ajudou pessoas que atuavam em outras igrejas, mas ela era muito católica. Íamos à missa juntos todo domingo.
CC: Como ela era na infância, o perfil de defesa das minorias já aparecia?
AS: Ela tinha fama de ser marrenta. Eu comecei a jogar vôlei com oito anos e no conjunto habitacional onde a gente morava, só tinha meninos que jogavam, então nunca me deixavam participar. Ela brigava, pegava a bola deles e jogava na rua. Dizia “se minha irmã não jogar, ninguém mais vai”.
Ela era assim, aquela que sempre queria liderar. Quando a gente ia sair em grupo, ela ia falar com a mãe das amigas: “Olha, tia, hoje a gente vai para a discoteca tal”. Ela sempre foi essa pessoa que representava o grupo.
CC: E como começou a militância dela?
AS: Ela começou a militar bastante na época do Ceasm (Centro de Ações Solidárias da Maré) que era um curso pré vestibular comunitário da Maré. E depois ela ganhou uma bolsa para estudar na PUC, que é um momento onde fica ainda mais ativa politicamente.
O discurso dela sempre foi muito voltado para o favelado e para as mulheres, eram as teclas que ela batia. Ela lia muito e de tudo um pouco. E muito coisas relacionadas à segurança pública, favela, políticas públicas.
CC: Como Marielle era vista na Maré?
AS: A Maré se dividia em duas partes. Pelos amigos, ela era vista com muito orgulho. O pessoal fez a campanha dela, subiam, desciam pela favela, era muito bem vista pelos amigos.
Parte dos que a apoiavam eram pessoas que a viram crescer, que viram ela no Ceasm, a Marielle catequista. Mas também tinha aquela parte meio desinformada em relação aos direitos humanos, que repetia aquele discurso “ah, ela trabalha com o Freixo, então defende bandido, não vou votar nela”.
CC: Marielle dizia que fazia parte das estatísticas por ter engravidado cedo, mas fugia das estatísticas por ter feito curso superior e mestrado. O que aconteceu para que ela saísse das estatísticas?
AS: Foi a minha mãe. Ela sempre insistiu para a gente estudasse, ela batia muito na tecla dos estudos, depois que Marielle engravidou principalmente. “Você tem que dar um jeito de crescer, de estudar. A gente tem que sair daqui”, ela dizia. Era frequente a gente acordar no meio da noite com tiroteio, encontrar uma cabeça de pessoa morta na porta de casa, ou com um corpo. Então minha mãe sempre falava: a gente já é pobre, já é preto, já mora na favela, então tem que estudar.
CC: Como era estar rodeado de violência?
AS: Era tenso, me lembro de várias vezes a gente indo para a escola, tinha que andar a Maré inteira, atravessar a passarela, passar a avenida Brasil para chegar, porque estudávamos no bairro de Bonsucesso. Muitas vezes tivemos que faltar a aula, que é a realidade que moradores de lá enfrentam ainda hoje, porque tinha tiroteio, não tinha como sair para ir para a escola.
Ou quando tinha morto no portão, a gente tinha que pular, ou pedir para alguém ir lá tirar o corpo. Foi uma infância muito boa mas também com muita violência ao redor, principalmente quando morávamos no Conjunto Esperança.
CC: O que significa a morte dela na Maré?
AS: Acho que significa luta. A Maré está de luto. Sempre que alguém que vem de baixo ganha voz, espaço, alguém vem e tenta tirar. A população da Maré sabe que ela estava incomodando, quanto estava crescendo e lutando pelos favelados.
CC: Marielle lutava contra os estigmas de gênero e raça. Na vida pessoal, como ela lidou com a orientação sexual?
AS: A relação da Marielle e da Mônica [companheira da vereadora] é bem antiga, mas como a Marielle era catequista, evitava falar. Mas quando entrou para política começou a falar mais sobre o assunto e deixar claro com quem ela queria estar.
CC: Está havendo uma campanha de difamação da imagem da Marielle, como vocês estão vendo e lidando com isso?
AS: Até postei no meu face algumas respostas. A gente está com contato de advogada e tudo que estamos vendo estamos mandando para ela. Eu também tenho respondido publicamente algumas coisas.
A Luyara [Santos, filha de Marielle] não é filha do Marcinho VP, A Marielle nunca foi usuária de drogas. Nós fomos atletas a vida inteira, nunca fomos envolvidas com drogas.
O Comando Vermelho não financiou a campanha da Marielle, eu tenho até hoje notas fiscais das gráficas, dos adesivos. Eu esperava um pouco mais de respeito com a nossa dor, achei que não fossem começar com essa onda tão rápido. Mas já que começou, vou até final para responder. E provar que é mentira.
CC: Qual é o legado da Marielle?
AS: É um legado grande, enorme, que deixou sementes. Se achavam que ela seria morta e calaria a boca, estão enganados. Não esperavam que a morte dela ia dar essa repercussão. Ela deixou um legado para as mulheres negras, para os favelados, para todo mundo. Ela não vai ser esquecida.