Mobilização estudantil questionou hierarquias e propôs novas dinâmicas no espaço escolar. Educação, porém, ainda é conservadora
“Eu ocupei a escola para lutar por nossos direitos. Enquanto éramos criminalizados pela polícia, fazíamos intervenções lá dentro, grupo de estudos, oficinas. A escola pública também é dos estudantes e da comunidade”.
As lembranças da ocupação no Colégio Estadual Liceu do Ceará, em Fortaleza, ainda estão muito vivas nas lembranças de Thalia Gomes da Silva, 20 anos.
A unidade foi uma das 54 ocupadas no Estado em 2016, fruto da mobilização estudantil que alcançou quase mil escolas em todo o País contra as pautas da PEC do Teto de Gastos e da Reforma do Ensino Médio, aprovadas posteriormente pelo Governo Federal.
Heudes Cássio Oliveira, 20 anos, foi um dos protagonistas da vitória estudantil contra o governo do Estado de São Paulo em 2015. Ele participou da ocupação na Escola Estadual Fernão Dias Paes, na zona Oeste de São Paulo.
Na época, os estudantes ocuparam cerca de 200 escolas durante 60 dias por se oporem à ideia de reorganização escolar proposta pelo governador Geraldo Alckmin (PSBD). As unidades só foram totalmente desocupadas um mês depois de o governo anunciar o recuo da decisão.
Além de proporem novas dinâmicas aos espaços escolares, os estudantes chamaram para si o papel de sujeito político ao reivindicarem um lugar de diálogo junto aos gestores públicos.
Um ano depois do movimento de 2016, no entanto, os jovens estão, aparentemente, afastados da cena pública. Torna-se pertinente questionar: consideramos o legado deixado pelos estudantes? Avançamos com a questão da participação juvenil?
Por uma participação horizontal
Heudes conta que boa parte dos estudantes que o acompanharam nas ocupações de 2015 seguiram caminhos alternativos de participação. “Muitos se organizaram em coletivos autônomos e se afastaram das entidades estudantis tradicionais e burocratizadas”, avalia.
O ex-secretário Nacional de Juventude e professor de Sociologia e Política da pós-graduação da FESPSP, Gabriel Medina, reconhece a demanda dos jovens por movimentos mais horizontais e autônomos, capazes de estabelecer uma relação direta com a prática. Daí decorre o que ele chama de “hiato participativo”.
“Os jovens não enxergam no campo progressista práticas públicas concretas, além dos discursos. Além disso, é preciso considerar o endurecimento dos processos de participação, dado o retrocesso democrático vivido pelo Brasil e o consequente esvaziamento das instâncias participativas, que já passavam por uma crise”, avalia.
Em sua opinião, isso explica a crescente procura por espaços não institucionalizados. “Essa geração que luta pelos direitos, pelas pautas feministas, contra o genocídio das periferias não encontra representação nas instituições e partidos”.
Corrobora com a tese a socióloga Rosemari Segurado, que acompanhou a filha durante as ocupações de 2015. Ela retoma uma das práticas estudantis, as comissões, para afirmar que, de maneira até inconsciente, os jovens mostraram outras formas de organização política.
“Eles se organizaram em comissões diversas, como alimentação e limpeza. O curioso é que, a todo o momento, trocavam esses papeis entre si, rompendo com a ideia da cristalização, que tanto lá, como em um espaço político, só cria um hiato entre representantes e representados”, observa.
Para ela, os jovens deixam um recado claro: “as estruturas muito hierárquicas, os partidos e os movimentos centralizados estão cada vez mais se distanciando de um diálogo com suas bases sociais”
Novas pautas
O hiato entre as novas gerações e as representações do campo progressista tem dado origem a outras mobilizações juvenis, que devem ser observadas pela sociedade, como analisa Gabriel Medina.
“Há um ciclo de movimentos pautados pela direita, como Movimento Brasil Livre (MBL), Vem Pra Rua e outros criados a partir de fundações, como Lemann e Instituto Millenium, que articulam jovens liberais na economia e nos valores, que querem participar da política, mas não necessariamente dos partidos de direita”.
Em sua análise, parte dessa cisão se deve ao derretimento dos partidos que pautaram a disputa democrática nos últimos 20 anos, PT e PSDB.
“O primeiro vive uma crise de renovação, de não conseguir organizar um recado de autocrítica sobre os problemas que recaem sobre o projeto, mesmo em um contexto de golpe; e o PSDB também passa por um processo de derretimento fortíssimo. Isso gera uma questão sobre como reconstituir o campo democrático e polos políticos inovadores e também é importante para pensar como enfrentaremos a ascensão do fascismo, de Bolsonaros e Dorias”, pondera.
O especialista também reforça a necessidade de buscar caminhos de participação para a juventude que “não quer só ler cartilhas, mas colocar a mão na massa.”
“Essas estruturas muito verticalizadas, que não permitem às pessoas de fato se sentirem parte, não estão conseguindo dialogar”, assegura.
E nas escolas?
O movimento estudantil também reforçou a necessidade das escolas se revirem e buscarem responder às demandas dos jovens. Heudes fala sobre o que pensa de uma escola ideal.
“Eu a vejo educando de forma libertária, dispondo autonomia e fornecendo as ferramentas para que o jovem trilhe o seu caminho, ao contrário da escola pública de hoje, que só conduz para o mercado de trabalho ou para a faculdade”, opina.
As demandas dos estudantes vêm sendo reforçadas por pesquisas que procuram entender o que pensam das redes educacionais, caso do estudo Nossa Escola em Reconstrução, realizado pelo Porvir em 2016, um dos programas do Instituto Inspirare. Foram ouvidos 132 mil adolescentes e jovens em todo o País.
De maneira geral, os estudantes requerem espaços menos rígidos, mais abertos à escuta e inclusivos, e que promovam outras formas de aprendizagem, com troca de conhecimento inclusive em contato com o território.
Em relação à aprendizagem, a pesquisa mostra que 36% dos estudantes querem realizar atividades práticas ou resolução de problemas e 27% desejam usar a tecnologia.
Para serem mais felizes nas escolas, 25% dos alunos querem poder escolher algumas das disciplinas obrigatórias e 18% preferem ter disciplinas no horário da aula e escolher as do contraturno.
Embora reconheça que as mudanças ainda não se deem em escala, a diretora executiva do Instituto Inspirare, Anna Penido, entende que o movimento estudantil fez que com que os gestores escolares e públicos começassem a prestar mais atenção sobre a importância de se criar canais de diálogo permanentes com a juventude.
“As ocupações abriram portas interessantes para avanços. O que os meninos levaram às escolas, as rodas de conversa, oficinas, as decisões coletivas indicam que elas [as escolas] têm cada vez mais o papel de serem incubadoras de outros temas, como a arte, cultura e diversidade. E ainda de promoverem conexão com o está fora delas, para que os estudantes se apropriem do conhecimento que está no mundo”, avalia.
Medina tem uma visão um pouco mais pessimista das escolas. Ele fala em um endurecimento das unidades e critica as posturas normativas por parte das secretarias de educação e direção escolar.
“Ainda estamos presos no modelo de participação tutelada, como os grêmios estudantis que ainda se pautam pelas decisões de diretores e coordenadores. Não vejo uma abertura para pensar novas formas de gestão em que os jovens sejam incorporados como sujeitos políticos ativos”, pondera.
Anna concorda que a educação ainda é um campo conservador, mas reitera a potência da juventude. “Em um momento de tantas polarizações, os jovens podem trazer o frescor necessário, atuar na contramão dos retrocessos. Mas, para isso, precisamos deixar de falar por eles, e considerar o que eles estão dizendo”, finaliza.