Luto merece dignidade, não diagnóstico
Por Allen J. Frances no Psychology Today
Tradução: Heloisa Villela
De todas as sugestões equivocados do DSM 5 [manual de diagnóstico de doenças psiquiátricas, que está em revisão nos Estados Unidos por um comitê formado pela Associação Americana de Psiquiatria], a que toca mais profundamente um sentimento público é a proposta de medicar o luto e transformá-lo em doença mental. Uma forte oposição provocou a publicação de dois editoriais na [revista médica especializada] Lancet, uma reportagem de capa no New York Times, e artigos estarrecidos em mais de 100 jornais do país.
E agora, durante apenas os últimos quatro dias, aconteceu o tipo de milagre online que somente é possível na internet. Joanne Cacciatore escreveu um blog tocante que rapidamente correu o mundo e foi direto ao coração dos que estão sofrendo. Um número impressionante de pessoas, 65.000, já leu o artigo dela e o passou adiante para parentes e amigos. É possível se juntar a eles no seguinte link:
http://drjoanne.blogspot.com
A Dra. Cacciatore é pesquisadora da Universidade Estadual do Arizona e fundadora da MISS Foundation – uma organização sem fins lucrativos que presta serviços a famílias de crianças que morreram ou que estão morrendo. A MISS Foundation tem 77 centros no mundo e um site com mais de um milhão de acessos por mês.
A Dra. Cacciatore escreve:
Em todas as culturas, a morte de uma criança é um golpe particularmente traumático. A maioria das pessoas treme com a ideia de perder um filho – para milhões de pessoas no mundo, esta tragédia tão temida é uma realidade.
Há muito tempo venho me opondo à sugestão do DSM 5 de remover a exclusão do luto, mas preferi ficar calada porque eu simplesmente não podia acreditar que isso tinha alguma chance de entrar na versão final do manual. Não fazia o menor sentido o DSM 5 permitir que os profissionais de saúde passassem a diagnosticar como uma doença mental séria – Major Depresssive Disorder – uma pessoa que não tem nada mais do que os sintomas perfeitamente normais do luto.
Eu decidi falar agora porque parece quase certo que o DSM 5 vai, realmente, levar adiante essa proposta muito mal concebida de transformar em patologia uma autêntica experiência humana de sofrimento. Após apenas duas semanas, uma pessoa em luto pode ser classificada como “doente mental” pelo critério casual de um psiquiatra, um assistente social ou um psicólogo. A arbitrariedade e o absurdo destes ’14-dias pós-perda-que se tornam-depressão’ acendeu uma fogueira contra a máquina do DSM no âmago do meu ser.
Nós não podemos esperar que a família se comporte como se nada tivesse acontecido duas semanas depois da morte de uma criança. Eu me pergunto: quantas pessoas o comitê do DSM 5 enterrou ou será que já cremou os próprios filhos? A comunidade relevante no caso – os que serão afetados por essas mudanças ultrajantes – não deveria ser ouvida?
Eu não posso ficar calada e permitir que esse diagnóstico encontre um lugar no DSM 5. Seria antiético e violaria o que sei ser real, verdadeiro e humano. Grande amor significa grande sofrimento. E poucas, se alguma, relações são tão significativas e repletas de amor como esta entre pais e filhos. Tratar a morte de um filho como se a receita de uma pílula pudesse curar este sofrimento normal, minimiza a experiência e passa longe do problema. Como o Lancet destacou, o médico que tem compaixão e abre o coração ajuda muito mais do que o que se apressa em oferecer um diagnóstico.
As 65.000 pessoas (e o número continua aumentando) e a declaração da Dra. Cacciatore são simplesmente inacreditáveis e mandam o recado mais claro possível à Associação Americana de Psiquiatria. Anteriormente, o DSM 5 ignorou muitas críticas cuidadosas e corajosas elaboradas por especialistas que contestam a interpretação da literatura científica relacionada ao diagnóstico que envolve o luto. O DSM 5 igualmente ignorou as críticas oriundas de um campo vasto da medicina – como foi expresso no Lancet. E o DSM 5 respondeu de forma ineficaz e impaciente à zombaria unânime que recebeu da imprensa mundial.
A APA deveria ter se dado conta, há muito tempo, que esta sugestão precisa ser rejeitada rápida e decisivamente – ao invés disso, fechou os olhos para todos os alertas. Agora, a APA se vê diante de uma oposição mais séria e inegável – a revolta espontânea dos integrantes de uma grande comunidade em luto. Eles rejeitam sonoramente a proposta do DSM 5 de diagnosticá-los erroneamente. Agora, é o DSM 5 contra o mundo. Por quanto mais tempo a APA pode se desconectar do senso comum para continuar com esta tolice de medicar o luto normal? Espero que a APA finalmente ouça o apelo da Dra. Cacciatore e aja rapidamente.