Problema pode estar ligado ao tráfico de pessoas e à exploração de imigrantes ilegais nas grandes cidades
Brasília – As campanhas e os programas de combate ao trabalho escravo no Brasil trouxeram à tona uma realidade pouco conhecida até recentemente – a de que a prática ocorre também nas áreas urbanas do país, e não apenas nos rincões das zonas rurais. A última atualização da lista suja do trabalho escravo, divulgada no fim de 2013 pelo Ministério do Trabalho, mostra 29 empresas localizadas em cidades nessa condição. Na lista anterior, de julho, apenas 14 apareciam na relação. Foram flagradas usando mão de obra em condições análogas à escravidão confecções, empreiteiras, locadoras de máquinas, uma boate e um hotel.
O número, embora pequeno em comparação com o total de empresas da lista, chama a atenção pelo fato de representar um aumento significativo do perfil dos empregadores que submetem seus empregados a este tipo de situação. Se há dez anos o mapa era observado em fazendas e carvoarias situadas em municípios do interior das regiões Norte e Nordeste, hoje a situação nos centros urbanos tem despertado a preocupação de técnicos, procuradores, fiscais e o Ministério Público do Trabalho.
Para o procurador-geral do Trabalho, Luís Camargo, o avanço para as áreas urbanas pode estar ligado diretamente ao tráfico de pessoas, uma vez que tem sido cada vez mais comum a exploração de imigrantes ilegais de outros países em empresas localizadas em grandes cidades nas capitais brasileiras.
Segundo ele, apesar da Convenção 29 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) estabelecer que a expressão “trabalho forçado ou obrigatório” compreende todo trabalho ou serviço exigido de uma pessoa sob a ameaça de sanção e para o qual não se tenha oferecido espontaneamente – além de excluir a possibilidade de o trabalhador ter sido enganado – muitos trabalhadores caem nesse tipo de situação estimulados por falsas promessas. “Nem sempre a pessoa vai obrigada, ela vai para esses falsos empregos por conta de falta de alternativas ou porque é analfabeta funcional, não tem formação e acaba envolvida nessa rede”, afirmou, durante simpósio sobre o tema realizado em Campinas, em junho passado.
Luís Camargo enfatizou que pessoas que se deslocam de um município a outro atrás de emprego, muitas vezes, recebem uma determinada quantia em dinheiro ou costumam deixar uma cesta básica para a família. E, nesse processo, iniciam dívidas que nunca conseguem pagar. “Assim, começa o trabalho escravo. Muitos estrangeiros, como os bolivianos, estão chegando ao Brasil atraídos pelo chamado pleno emprego. Como isso não cessará por conta da queda nos índices econômicos, então temos muito o que fazer pela frente”, acentuou, numa referência à fiscalização e monitoramento destas empresas.
O procurador-geral do Trabalho costuma chamar a atenção, sempre que aborda o tema, para dispositivos constitucionais que permitem a expropriação de bens para as empresas que cometerem tais práticas e pediu empenho no sentido de serem realizadas ações articuladas entre Executivo, Legislativo e Judiciário.
110 empresas
Na prática, a chamada Lista suja do MTE apresentou na última semana 125 nomes a mais que no balanço passado, divulgado em julho. Foram incluídos 108 novos empregadores no grupo dos flagrados cometendo trabalho escravo, mas o Ministério do Trabalho incluiu outros dois – de empresas que tinham sido retiradas e agora entraram novamente no rol, por conta de decisão judicial. O referido cadastro, por outro lado, também excluiu 17 empresas, pelo fato dos responsáveis terem cumprido todos os requisitos administrativos exigidos.
Os estados onde mais foram observadas empresas denunciadas, pela ordem, são: Pará (onde estão concentrados 26,08% do total de empregadores mencionados), Mato Grosso (11,23%), Goiás (8,46%) e Minas Gerais (8,12%). O balanço é resultado da quantidade de autos lavrados ao longo do último semestre pelas fiscalizações do MTE – em conjunto ou a partir de denúncias do Ministério Público (número, este, que ainda será divulgado até o final de janeiro, mas que, de acordo com informações do ministério, deve se aproximar do observado em 2012, que chegou a 3.753 autos para um total de 255 estabelecimentos fiscalizados).
Quem figura na “lista suja” passa a enfrentar restrições de crédito nos bancos públicos e corre o risco de perder negócios com aproximadamente 180 empresas signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (responsáveis por um quinto do PIB nacional). De acordo com informações do MTE, a inclusão dos nomes dos empregadores infratores no cadastro só ocorre após decisão administrativa final relativa ao auto de infração, lavrado em decorrência de ação fiscal, em que tenha havido a identificação de pessoas submetidas ao “trabalho análogo ao de escravo”.
Estes empregadores, por sua vez, quando incluídos são submetidos ao pagamento de multas e infrações diversas e têm suas atividades monitoradas pelo governo por um período de dois anos para que possam vir a ter seus nomes retirados. Além disso, ficam impedidos de firmar contratos com o poder público e têm crédito restringido por várias instituições bancárias, em especial, o Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Também ficam proibidos de vender sua produção para instituições governamentais.
Destaques da lista
Um dos destaques da última lista, divulgada pelo Ministério do Trabalho, foi o nome do pecuarista João Bertin Filho, do Mato Grosso, incluído na relação em dezembro, devido à descoberta de sete pessoas flagradas trabalhando em suas fazendas no trato de 18 mil cabeças de gado e 35 mil hectares para extração de madeira.
O resultado da fiscalização realizada no local mostrou, a partir de fotos, vídeos e depoimentos diversos, que estes trabalhadores atuaram durante meses na extração de madeira para expansão de pastos isolados na mata, no interior da fazenda de Bertin, sem receber salários. Eles foram submetidos a condições degradantes (vivendo em barracos de lona dentro da mata, sem direito a água potável) e sem terem como deixar o local.
Outro caso observado, no mesmo estado (e apontado pelo MTE) tem como responsável a empresa Parecis Energia S/A , onde a fiscalização encontrou 80 trabalhadores em alojamentos precários, bebendo água do rio em que usavam também para banho, além de serem proibidos de deixar o local. Os trabalhadores tinham um caderno de dívidas onde eram anotados seus nomes e a alimentação oferecida e não tinham direito a carteira assinada.
Em São Paulo, destacam-se na lista, nos últimos três anos, as empresas de confecção Sete Sete Cinco e Talita Kume. A Sete Sete Cinco foi encontrada por fiscais explorando duas trabalhadoras bolivianas mantidas em condições degradantes e submetidas a jornadas exaustivas sob ameaças e assédio no município de Carapicuíba. Já a Talita Kume foi flagrada mantendo nove bolivianos entre seus empregados em junho de 2012 recebendo R$ 1 por peça produzida e pagando, com o dinheiro recebido, os custos da viagem ao Brasil.
Em relação à área urbana, uma das novas empresas incluída na lista foi a Mod Griff, do município de Toritama, em Pernambuco. A empresa foi encontrada em março com sete trabalhadores também em condições análogas à de escravidão numa oficina de costura.
Na área de construção civil, figura a Construtora Croma, enquadrada, em 2012, por manter 46 trabalhadores nas obras de um conjunto habitacional no interior paulista sem receber salários durante dois meses, alojados em casas superlotadas e se submetendo a jornadas exaustivas de trabalho.
Estes estabelecimentos foram procurados pela reportagem, a partir dos contatos obtidos no Ministério do Trabalho e no MPT, mas alguns não foram encontrados nos endereços mencionados no cadastro. Em dois casos (a confecção de Toritama e a fazenda de Bertin Filho), seus representantes afirmaram que não pretendem se manifestar sobre o caso.
Conforme explicou um dos responsáveis pelas fiscalizações, o técnico Amarildo Borges, só são incluídas na relação a as empresas ou pessoas físicas que têm julgados recursos administrativos em última instância em Brasília. “As empresas não perdem apenas investimentos e o direito a financiamentos públicos, mas ficam expostas a uma repercussão social negativa dos seus atos”, enfatizou a procuradora Débora Tito.