Denúncias e motins revelam precariedade de centros de acolhida em São Paulo, mas ONGs que administram os serviços não sofrem qualquer punição do poder público
São Paulo – A precariedade nos serviços de assistência social para pessoas em situação de rua em São Paulo tem elevado a tensão nos centros de acolhida espalhados pela cidade. Pelo menos dois motins reivindicando melhorias nas condições das instalações e no fornecimento de itens básicos de higiene ocorreram desde dezembro. Além do episódio no Estação Vivência, no Canindé, zona norte, que culminou com a prisão de quatro manifestantes, o Complexo Prates também teve problemas e chegou a ficar inativo, segundo relatos de funcionários. No Parque Dom Pedro II, região central, assistentes sociais e profissionais de saúde abandonaram o serviço por medo do tráfico e uma favela se formou na porta do espaço. Depois dos episódios, cresce nos centros o clima de rebelião.
Para ativistas, trabalhadores da assistência social e pessoas em situação de rua que utilizam os serviços, o cenário precário é decorrente de um processo gradual de omissão do poder público e negligência das organizações não governamentais que administram os centros de acolhida para adultos na cidade, 54 no total.
Apesar de várias denúncias, as entidades continuam aptas a concorrer a editais públicos. Para o vice-presidente do Conselho Municipal de Assistência Social (Comas), Francis Larry Lisboa, a situação é fruto da dependência que o Estado tem das entidades e o poder delas junto ao Comas. O órgão conta com 18 representantes, nove indicados pelo poder público e nove da sociedade civil, sendo três ligados a ONGs, três aos trabalhadores da assistência social e apenas três aos usuários, entre eles Lisboa.
“Existe uma resistência do conselho para não descredenciar uma entidade, porque elas estão representadas aqui. São usadas teses de que elas não podem ser descredenciadas pelo erro de uma pessoa. E, claro, algumas têm muitos serviços na cidade; se eu descredenciá-la hoje, ela não pode receber um centavo da prefeitura amanhã. E o que eu faço com, digamos, 20 serviços da cidade? Então se fica meio refém do que acontece”, afirma Lisboa.
“Muitas dessas questões são também políticas. Tem vereadores com muita influência em certas regiões. Não que a ONG pertença a ele, o que seria ilegal, mas tem o apoio e aí o conselheiro do poder público da região não vai comprar essa briga política. Às vezes uma entidade que não trabalha tão bem acaba sendo beneficiada por essas questões”, avalia.
“Uma vez que uma entidade assume o serviço, é muito difícil que outra tente disputá-lo em função de uma certa ‘conversa’ que há entre eles”, aponta.
Um desses casos, em que há suspeitas de direcionamento do edital, é o do Centro de Acolhida Pedroso. O serviço é administrado há 22 anos pela Associação Metodista de Ação Social é há denúncias de que outras entidades estavam sendo desincentivadas a participar da concorrência em curso para favorecer a Associação.
A suspensão do edital foi divulgada hoje (10) no Diário Oficial do Município. Procurado, o gerente do serviço, Everton Fernando, informou que ainda não havia tomado conhecimento da suspensão e não quis comentar.
Nem o calor dos últimos dias nem os problemas relatados diminuíram a procura da população em situação de rua pelos centros de acolhida. Antes do final da tarde, filas de pessoas tentando vagas já se formam diante dos locais onde se presta esse serviço espalhados pela capital paulista.
“Isso demonstra que a pessoa em situação de rua não quer ficar na rua. Ela procura o albergue porque é mais seguro, para descansar e tomar banho. Dizer que há vagas ociosas, que eles não procuram, é uma mentira”, afirma Francis. “Quem procura esse tipo de serviço não quer lençol de ouro. Às vezes o lugar pode não ter uma estrutura boa, mas se ele é bem atendido, ele volta. Esse tratamento que ele recebe é, na maioria das vezes, o motivador das revoltas”, afirma.
No caso do Complexo Prates, administrado pela Sociedade Amiga e Esportiva Copacabana (Saec), funcionários relatam que a antiga diretora precisou sair escondida dentro de um freezer depois de uma revolta dos usuários, que ficaram sem itens básicos de higiene, como sabonete e escovas de dente. O centro foi inaugurado em 2012 e tem instalações novas e grande área disponível.
“Esse era um dos serviços modelo. Tinha muita integração com serviços de saúde, tinha uma equipe engajada. Se agora está assim, imagina as cabeças-de-porco”, afirma Lisboa, alarmado pelo excesso de moscas na cozinha e ausência de oficinas de atividades.
A situação se agravou depois que “puxadinhos”, espaços improvisados para acolher a demanda durante o inverno, foram instalados nas áreas de convivência do Complexo. Atividades como futebol e outras 28 oficinas foram suspensas. Ociosos, os usuários ficaram ansiosos. O motim não ganhou as páginas de jornais nem foi comunicado oficialmente ao Comas, mas é relatado por diversos gestores da rede de assistência social.
Já o Estação Vivenda, uma semana depois do motim, passa por pequenas reformas. Homens com britadeiras procuram um suposto vazamento que estaria impedindo que a água do imenso reservatório chegasse às torneiras e chuveiros do espaço, que tem capacidade para abrigar até 200 homens. Mas imagens divulgadas logo depois do protesto mostravam lixo amontoado e banheiros entupidos, em função da falta de água. O problema, admitem os funcionários, já ocorria há mais de seis meses. Foi preciso que os usuários do serviço queimassem colchões diante do imóvel para que a busca começasse. Mas isso teve um custo: a prisão de quatro homens que participaram do ato. Apesar de três deles serem primários e de a Pastoral do Povo de Rua ter fornecido um endereço de referência, eles permanecem no Centro de Detenção Provisória Belém II, acusados, entre outras coisas, de formação de quadrilha. Nesta sexta-feira (10), está marcado o terceiro ato para pedir a libertação de Alexandro, Hudson, Vantuir e Enmanuel da prisão. A concentração para manifestação está prevista para as 17h30, em frente ao Teatro Municipal, no centro de São Paulo. O ato é convocado por diversos grupos e entidades da cidade.
Segundo Lisboa, os problemas relativos à Estação Vivência são conhecidos há anos. Mas isso não impediu que a Coordenação Regional das Obras de Promoção Humana (Croph), responsável por esse espaço e outros 20 da rede de assistência da cidade, ganhasse o convênio de um Centro de Acolhida na Avenida Zaki Narchi, na Vila Guilherme, que nasceu como medida emergencial no período de frio mais intenso na capital paulista.
Lá, 500 homens abrigados em um galpão têm à sua disposição apenas uma torneira para lavar utensílios e roupas e escovar os dentes, banheiros químicos e dois chuveiros. Os funcionários insistem que existiam mais, mas que foram roubados. Mas não há saídas de água para outros.
Para o coordenador da Pastoral do Povo de Rua, padre Júlio Lancellotti, a forma como as entidades se candidatam para participar da concorrência dos editais é inadequada.
“Se diz que são feitas audiências onde as entidades se apresentam. Mas são meramente formais. Muitas vezes só uma disputa”, afirma. Ele também critica a maneira como as organizações ampliam sua atuação. “Há entidades que nascem em um determinado bairro e acabam se expandindo e atendendo a cidade inteira.”
Padre Júlio ressalta a importância dos itens básicos de higiene pessoal para as pessoas que procuram os serviços de assistência social. “A pessoa vai para lá exatamente para atender a essa necessidade e a revolta é também porque ela sabe que tem direito a isso.”
Para a secretária-executiva do Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, Carolina Ferro, que também é membro do Comitê Municipal Intersetorial da População de Rua, nenhuma entidade seria capaz de prestar um bom serviço diante dos “vícios” dos editais elaborados pelo poder público, que também não fiscaliza.
“Os serviços são desenhados pela prefeitura de maneira precária. A melhor entidade do mundo não teria condições de prestar um bom atendimento. Já nos desenhos dos editais, não existe nenhum centro de acolhida que respeita as diretrizes nacionais que dizem que eles não podem receber mais de 50 pessoas”, afirma.
“Temos denúncias graves de tortura, de comida estragada. Isso de fato é responsabilidade das entidades. Elas aceitam participar disso e precarizam ainda mais as condições. Mas se você tem um assistente social para 200 pessoas, fica mais fácil cometer erros”, exemplifica.
A Conselheira do Comas Maria Nazareth Cupertino, que representa os trabalhadores no coletivo, pondera que a responsabilidade pelo serviço de acolhimento é sempre do poder público, ainda que ele o terceirize.
“Ainda que a prefeitura faça o convênio, ela é a principal responsável. A organização entra para administrar o recurso. Mas se há problemas relatados há muito tempo que não são solucionados, há falhas na fiscalização.”
A RBA procurou a Secretaria de Desenvolvimento Social e as entidades citadas, mas elas não se pronunciaram até o fechamento desta reportagem.