Notícias

Setor privado e perfil das faculdades afasta jovens médicos de Medicina de Família

Conhecer o paciente desde o pré-natal, saber que um determinado diagnóstico de depressão pode estar ligado à violência doméstica, estudar os hábitos alimentares e as possibilidades de lazer de uma comunidade, encaminhar casos de dependência química para uma assistente social. Essas são algumas atividades dos chamados Médicos de Família e Comunidade, uma especialidade que, apesar de pouco conhecida, consegue resolver 80% dos problemas de saúde das comunidades e é fundamental para o Sistema Único de Saúde.

Mesmo com a importância estratégica, o total de vagas ocupadas de residência na área anualmente não passa de 35%, segundo a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Entre as 18.714 novas vagas de residência oferecidas no país em 2014, apenas 1.266 são para a área, segundo o Ministério da Educação. Ainda não foram contabilizadas quantas vagas na especialidade foram ocupadas neste ano.

“É um profissional diferente do médico generalista que vai trabalhar no postinho. A gente trata da saúde da mulher, da criança, faz pré-natal, acompanha saúde do adolescente e problemas de saúde mental”, esclarece a médica de família e comunidade Bruna Ballarotti, que trabalha em uma unidade básica em São Bernardo do Campo, onde também é preceptora de residentes. “Quem vai precisar ir para um hospital? Menos de 5% das pessoas. Quem vai precisar de um especialista? Menos de 20%. O resto pode ser atendido em uma saúde primária bem estruturada.”

Na capital paulista, das cinco vagas oferecidas pela Secretaria Municipal de Saúde para residência nesse segmento este ano, nenhuma foi preenchia. Para contornar o déficit, foi aberto um novo processo seletivo, que ocorreu no último dia 30. Um candidato se inscreveu, mas não compareceu no dia da prova.

O problema se repete pelo país: em Salvador, das 22 vagas oferecidas para residência em Medicina de Família e Comunidade, quatro foram preenchidas. As secretarias municipais de Saúde de Campo Grande e de Manaus também confirmaram dificuldades de atrair residentes para a especialidade. Apenas as prefeituras de Curitiba, Florianópolis e Rio Grande do Sul, todas na região Sul, conseguiram preencher as vagas.

Há soluções para resolver o problema, segundo o presidente da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, Daniel Knupp, como os adotados por países desenvolvidos que possuem um sistema universal de saúde pública. No Canadá, Inglaterra, Portugal e Espanha, por exemplo, a residência médica é obrigatória, com as vagas reguladas pelo Estado, dependendo das necessidades do sistema de saúde. “Que são as necessidades da população”, afirma Knupp. “Nesses países, cerca de 50% das vagas de residência são para Medicina de Família e Comunidade. A oferta de vagas é regulada pelo Ministério da Saúde.”

O médico de família é um profissional que tem interesse pela atividade clínica diversificada, sem se restringir a uma determinada população, a um procedimento específico ou a um grupo de doenças. Ele vai se responsabilizar por uma população com características bastante diferentes e deve estar atento ao contexto social em que essas pessoas estão envolvidas e como ele impacta na saúde delas.

O especialista é considerado a porta de entrada no sistema de saúde e deve acompanhar os pacientes de forma continuada e integral. Apesar de ser uma especialidade também presente na saúde suplementar, o principal local de trabalho é o Sistema Único de Saúde, em ações como o Programa Saúde da Família.

Para o presidente da Associação de Médicos Residentes do Estado de São Paulo (Ameresp), Arthur Danila, a carreira não se torna atrativa pela falta de estrutura. “Existem muitos estudantes com perfil para a medicina de família, mas o médicos não encontram lugares de atendimento adequados, nem um plano de carreira, nem um reconhecimento que o impulsione a ir para essa área, mesmo isso sendo o mais importante para o país. O Estado tem de dar condições para atrair os médicos.”

Knupp discorda. “As políticas de valorização que as entidades médicas defendem são relevantes, mas não têm nem de perto a possibilidade de resolver esse problema da residência. Falta estimulo durante a graduação. Temos pouquíssimos departamentos de Medicina de Família dentro das faculdades para sistematizar os conhecimentos dessa área”, critica. “O estudante não tem um modelo de médico de família na formação. Há um entendimento que o status do especialista com mais inserção no sistema privado, é mais interessante.”

Outro problema, segundo a médica de família Bruna Ballarotti, é a lógica das escolas médicas de privilegiarem a formação dos chamados superespecialistas. “É a lógica da fragmentação, que é interessante para alguns setores da sociedade, mas não para o paciente nem para o governo, que conseguiria ter um profissional que resolve muitos problemas, de forma muito mais econômica. A especialidade não é valorizada.”

Ela, no entanto, afirma que problemas estruturais na saúde pública prejudicam o trabalho dos especialistas. “Trabalho na saúde pública desde 2011 e já fui terceirizada e contratada. Eu preciso ter exames, medicações, fisioterapia e um corpo de enfermagem bem treinado e isso não existe na maioria dos municípios. A vida real nas UBS é muito difícil.”

Para fortalecer a atenção básica, a presidenta Dilma Rousseff criou o programa Mais Médicos, no qual profissionais brasileiros e estrangeiros vão trabalhar no atendimento primário por três anos, recebendo uma bolsa, com prioridade para as áreas isoladas e para a periferias das grandes cidade. Em sua quinta e última fase, iniciada neste mês, o programa incorporará ao SUS 3.745 novos médicos. Atualmente, o Mais Médicos conta com 13.235 profissionais que integram equipes de saúde da família, 74% deles em áreas de extrema vulnerabilidade social.

“A gente não precisa simplesmente formar mais médicos de família, a gente precisa ter um sistema público de saúde de qualidade para as pessoas e a formação de um maior número de médicos de família é uma prerrogativa para isso”, conclui Knupp.

Mais desafios

Segundo o Ministério da Saúde, o governo está trabalhando para universalizar a residência médica no país até 2018, com a criação de 12,4 mil vagas. Entre as prioridades do órgão estão as residências de Medicina de Família e Comunidade, Pediatria, Anestesiologia, Cancerologia Pediátrica, Cancerologia Cirúrgica, Cancerologia Clínica, Cirurgia do Trauma, Cirurgia Geral, Clínica Médica, Medicina de Urgência, Medicina Intensiva, Nefrologia, Neonatologia, Neurocirurgia, Obstetrícia e Ginecologia, Ortopedia, Psiquiatria, Radiologia e Radioterapia.

A procura por residências médicas em Pediatria também registrou queda, mas há dois anos tem voltado a atrair estudantes, segundo a Sociedade Paulista de Pediatria. Na cidade de São Paulo, das dez vagas oferecidas para residência na especialidade, oito foram preenchidas na primeira seleção. A Secretaria de Saúde chamou os candidatos que optaram pela carreira como segunda opção e preencheu todas as vagas na área.

Um dos problemas apontados pela diretora da Sociedade Paulista de Pediatria, Ana Crista Ribeiro, é a baixa remuneração dos pediatras, tento em vista que as consultas são mais demoradas que a média e pagas com os mesmos valores. “Há uma batalha para que passe a ser cobrada a puericultura, que é a pesagem da criança. Parece simples: pesar medir e orientar, mas muito do desenvolvimento do paciente é analisado nesse processo.”

Deixe um comentário