Todos os dias, a auxiliar de limpeza Jaqueline Teixeira dos Santos, de 35 anos, sai de casa, no bairro de Heliópolis, na capital paulista, para ir à faculdade de Pedagogia. Em uma caminhada de 30 minutos, a passos rápidos, sobressalta-se a cada barulho ou estranho que cruza pelo caminho, mal iluminado e sem policiamento. Troca de calçada quando se depara com grupos de rapazes desconhecidos e evita usar roupas “chamativas”. Embora necessite para seus trabalhos na faculdade, prefere não levar o laptop.
A mais de 2 mil quilômetros dali, nas proximidades do Cabo de Santo Agostinho, cidade da região metropolitana do Recife, Madalena Barbosa, de 40 anos, abriu mão de trabalhar fora como técnica de enfermagem por causa da falta de transporte público perto de casa. A única opção a faria caminhar por um longo trecho na escuridão e sem proteção policial.
As duas situações ilustram o que uma pesquisa da ONG internacional ActionAid descobriu ao ouvir mulheres de baixa renda no Rio de Janeiro, São Paulo, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Segundo as entrevistadas, não é, como sugerem os machistas, a maneira de se vestir, mas a má qualidade dos serviços públicos o principal facilitador para a violência contra a mulher. A falta de iluminação nas ruas é a queixa mais frequente, seguida da falta de policiamento e do transporte precário. Questões banais como o tempo de espera no ponto de ônibus influenciam na sensação de segurança. Se o ônibus vem logo, é tranquilo. Quanto mais a condução tarda e se fica sozinha no ponto, mais aumenta o medo.
A pesquisa recolheu depoimentos dramáticos sobre situações cotidianas. Entre eles o de uma adolescente de 15 anos do Cabo de Santo Agostinho, cidade que viveu, nos últimos anos, um crescimento populacional por conta das obras do Porto de Suape. “Quem me dera se pudesse ser livre, se pudesse viver sem medo, se as ruas fossem todas iluminadas na minha comunidade, se pudesse ir sozinha para o ponto de ônibus a qualquer horário. Quem me dera ter um policiamento bom, e que eu não precisasse ter medo dele. Como seria bom se me sentisse segura no ônibus e pudesse ir nele para a escola ou para qualquer outro lugar sem ter nenhum, nem um pouquinho de medo de nada”, resumiu a menina.
Os alarmantes números sobre os casos de estupro explicam o temor feminino ao andar em ruas ermas e mal iluminadas. Apenas no Distrito Federal acontecem, em média, dois estupros por dia, segundo levantamento da Secretaria de Segurança Pública em delegacias da capital em janeiro e fevereiro deste ano. O Ceará, outro estado que realizou idêntica apuração, chegou a número semelhante, com 66 casos entre janeiro e fevereiro. No ano passado, foram 536 estupros, ou dez por semana. Em todo o Brasil, informa o Ipea, estima-se que, a cada ano, 527 mil cidadãos sejam estuprados, 89% são mulheres.
“Causa espanto descobrir que muitos desses casos de assaltos e estupros poderiam ter sido evitados se iniciativas tão simples fossem tomadas, como aumentar a iluminação das ruas”, diz Ana Paula Ferreira, coordenadora da Equipe de Direito da Mulher da ActionAid no Brasil. “A precariedade dos serviços públicos aumenta a vulnerabilidade das mulheres e contribui para elas deixarem de estudar ou trabalhar movidas pelo medo.”
As pesquisadoras ficaram surpresas ao descobrir que, como as mulheres da zona rural, também aquelas das zonas urbanas levavam lanterna na bolsa para se locomover pela cidade. Ou usavam a lanterna do celular para iluminar o caminho. Em alguns lugares, como Passarinho, bairro de Olinda, Pernambuco, havia vários pontos sem iluminação. Em Upanema, no Rio Grande do Norte, o grupo organizou um “lanternaço” contra a iluminação precária e, no dia seguinte, a companhia de eletricidade apareceu para corrigir os problemas.
A falta de policiamento, outra queixa constante, esbarra em uma realidade chocante: segundo as mulheres ouvidas pela pesquisa, a maior parte dos casos de assédio nas ruas é protagonizada pelos próprios policiais. “O despreparo da polícia é enorme, ela não é treinada para acolher a mulher”, diz Ana Paula Ferreira. “É preciso aumentar o policiamento, mas eles têm, principalmente, de ser mais bem preparados. Se não qualificar, não vai adiantar nada.”
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Um dos pontos mais importantes da campanha por “Cidades Mais Seguras Para as Mulheres” não se resume ao risco de assaltos e estupros provocado pela baixa qualidade dos serviços públicos. Há o prejuízo profissional e pessoal, com efeitos sobre a autoestima. Várias mulheres afirmaram ter deixado de sair para se divertir pela falta de transporte disponível ou por temerem o caminho a percorrer. Mais grave: muitas recusaram oportunidades de trabalho pela mesma razão.
“Minha filha Rayssa ganhou uma bolsa de estágio, mas nós não a deixamos aceitar porque seria no Recife e ela teria de voltar à noite por um caminho perigoso”, conta Madalena, a técnica de enfermagem que virou vendedora de salgadinhos por não querer encarar a escuridão. “Não tem um poste no caminho pelo qual ela teria de passar. Com luz, ao menos é possível enxergar o que está a 2 metros da gente.”
“Num lugar ermo, sem iluminação, a pessoa pode estar escondida e a gente não vê”, diz Jaqueline, chateada por não levar seu laptop para a faculdade. “Como eu trabalho de dia, poderia aproveitar o intervalo para me reunir com o grupo de colegas e adiantar os trabalhos. Sem o laptop, não dá.”
Na carta pública a ser divulgada, a ActionAid cobrará o empenho dos governos estaduais e federal, do Legislativo e dos prestadores de serviços públicos, como as companhias de energia elétrica. Poucas vezes os políticos tiveram diante de si a oportunidade de fazer (e realizar) promessas tão básicas.
*Reportagem publicada originalmente na edição 812 de CartaCapital com o título “À própria sorte”