“Tudo o que é precário, desprotegido, atinge as populações mais vulneráveis, especialmente mulheres negras e jovens”, diz economista da Unicamp
Análise feita pela economista, Marilane Teixeira, do CESIT-Unicamp, nos dados da PNAD Contínua do IBGE, mostra como a crise econômica atingiu as mulheres, em especial as negras e menos escolarizadas, nos últimos três anos.
Segundo a professora, mais de 50% do total de 14,1 milhões de desempregados em 2017 são mulheres – 63,2% delas são negras. No primeiro trimestre do ano passado, o desemprego atingiu 73% das mulheres. Entre as negras, o percentual foi de 96%.
O emprego formal perdeu posição diante das demais modalidades de contratação: caiu de 39,8% para 36,8% entre as mulheres brancas e de 32,2% para 30,5% entre as negras. Caiu também o número de trabalhadoras domésticas com carteira assinada ao mesmo tempo em que houve aumento de 11,7% no número de domésticas sem registro em carteira. Já o trabalho por conta própria cresceu 17,6% entre as mulheres negras e 10% entre as brancas.
O Portal CUT conversou com a economista sobre o retrocesso que a recessão representou na vida das mulheres brasileiras.
Confira a entrevista:
Portal CUT: Os dados da PNAD demonstram que é a mulher, em especial a negra, que mais sofre com os efeitos da crise. Por quê?
Marilane Teixeira: Os dados dos últimos três anos são convincentes sobre isso. As mulheres, em especial as negras, são as que compõem os estratos de renda e família mais pobres. Muitas tentaram ingressar no mercado de trabalho, mas poucas conseguiram emprego, efetivamente. Elas foram para o mercado de trabalho, talvez, por conta das condições em casa, porque outros membros da família perderam o emprego e houve a necessidade de complementar a renda familiar.
A partir do momento que elas ingressam no mercado de trabalho, mas não conseguem emprego, há o aumento da taxa de desemprego, que sempre foi mais alta para as mulheres.
No 4° trimestre de 2017, aumentou para quatro milhões o número de mulheres negras desempregadas. Outro dado importante é que as mulheres negras que entraram no mercado foram para os trabalhos informais, ou por conta própria, ou ainda em uma categoria que chamamos de empregadora ou microempreendedora individual, que é a cabeleireira, a manicure, ou ainda quem faz alimentos em casa para vender. Portanto, o emprego é precário e gera insegurança.
Portal CUT: Historicamente, o trabalho precário é mais comum entre a população feminina negra?
Marilane Teixeira: Sim. E são três pontos para analisarmos o porquê. Primeiro é que temos raízes históricas que nos remetem ao período de escravidão.
Tudo o que é precário, desprotegido, atinge as populações mais vulneráveis, especialmente mulheres negras e jovens.
Outro ponto a ser analisado é que a economia, no último período, apresenta uma pífia recuperação. A projeção para 2017 é de crescimento de 1% no PIB. A pergunta é: não deveria haver geração de emprego decente?
O fato é que a geração de emprego precário está associada ao projeto de sociedade. Gera-se emprego em um setor, o de serviços, basicamente, de maneira semelhante ao que se via nos anos 1990, quando havia uma brutal concentração de renda. O emprego gerado é o trabalho doméstico, por conta própria, serviços pessoais que são característicos de uma sociedade com concentração de renda. E são as parcelas mais vulneráveis que se sujeitam.
Portal CUT: Podemos dizer que essas pessoas estão “se virando para sobreviver”?
Marilane Teixeira: Claro. O emprego por conta própria é exatamente isso: “trabalhar em casa para se virar”. A trabalhadora gera sua própria demanda. Por exemplo, faz em casa o salgado, o pastel, o sanduíche, para vender de casa em casa, nos pontos de ônibus, em locais de maior concentração de pessoas.
Existe, dentro de casa, uma pressão para que ela vá para mercado de trabalho para ajudar em casa, mas o único caminho que elas têm é esse.
Por outro lado, no último período houve cortes de investimentos públicos federais que impactaram na vida das mulheres. Ela tem que dar conta da casa, da família, da reprodução e ao mesmo tempo encontrar um bico.
Quando se reduz políticas públicas de proteção às pessoas, em especial para a mulher, o impacto é ainda maior. Imagina se uma pessoa da família está doente e o sistema de saúde público manda ela para casa por falta de recurso. Quem vai cuidar desse enfermo? Obviamente é a mulher. É mais uma responsabilidade nas costas dela. As pessoas mais vulneráveis, que dependem da proteção do Estado, não são vistas de forma justa porque não fazem parte de um mundo mercantilizado.
Portal CUT: Aos olhos dos conservadores, esse tipo de atividade é vista como “história de superação”, mas quais são as consequências desse tipo de situação?
Marilane Teixeira: Existe uma falsa ideia de que essas pessoas são empreendedoras. É um equívoco porque são trabalhos gerados em péssimas condições.
A verdade é que a maior parte dessas pessoas gostaria de ter emprego com registro, com direitos, e não depender de atividades inseguras, principalmente, porque a renda é pequena.
O percentual de pessoas que receberam até meio salário mínimo em 2017 é alarmante. No último trimestre do ano passado, havia 9.197.157 de pessoas ocupadas recebendo até meio salário mínimo. Mais da metade, 53%, eram mulheres. As mulheres negras correspondem a 38% do total de quem recebia até meio salário. Ou seja, esse emprego que os conservadores chamam de empreendedorismo gera renda insuficiente para garantir sobrevivência. Quem vai ver de meio salário mínimo por mês?
Portal CUT: É o que sobra para as pessoas mais vulneráveis?
Marilane Teixeira: Se você analisar especificamente as mulheres negras, vai concluir que, por estarem nas camadas menos favorecidas, elas são mais discriminadas, marginalizadas e dificilmente irão para um caixa de um supermercado, por exemplo. O que sobra realmente é o trabalho mais precário, o trabalho doméstico. Essas raízes culturais brasileiras, conservadoras, estruturam a sociedade tornando-a racista e sexista. E em crise, esses fatores ficam exacerbados.
Se você analisar especificamente as mulheres negras, vai concluir que, por estarem nas camadas menos favorecidas, elas são mais discriminadas, marginalizadas e dificilmente irão para um caixa de um supermercado, por exemplo.
Portal CUT: Você fez uma avaliação sobre os recentes períodos da história brasileira ao analisar os dados da PNAD. Houve retrocesso?
Marilane Teixeira: É um contraste. Mais que isso. É uma diferença gritante. Todos os dados, principalmente no mercado de trabalho, melhoraram entre 2004 e 2013. Naquele período, aumentou a formalização do trabalho, melhorou a renda, houve todo um processo de inclusão social com políticas públicas que estão sendo desmontadas. Se você analisar o período de 2004 a 2009, praticamente todos que entraram no mercado de trabalho foram incorporados. A formalização do trabalho melhorou especialmente para as mulheres. Estamos falando de emprego decente, de qualidade…