Moradora da periferia de Brasília (DF), Nete é uma das milhares de mulheres afetadas pela precarização do trabalho
A cozinheira Marinélia Lopes dos Santos, de 44 anos, mais conhecida como “Nete”, é uma dos tantos brasileiros diretamente afetados pelo contexto de maior precarização das relações de trabalho no país.
Moradora da Ceilândia, cidade-satélite localizada a 30km de Brasília (DF), ela sai de casa todo dia ainda durante a madrugada para bater ponto na lanchonete onde trabalha até o anoitecer. Nete foi contratada há dez anos com carteira assinada para assumir uma vaga de cozinheira, mas hoje precisa acumular diferentes tarefas na empresa.
O acirramento da crise econômica provocou, no ano passado, a demissão de seis dos nove funcionários da lanchonete. Como não existe crise sem prejuízo para as relações de trabalho, a conta sobrou para os três que ainda conseguem manter o emprego.
“Acabou eu dando por dez [pessoas]. Eu faço suco, limpo o chão, recolho o lixo, se não tiver ninguém pra recolher. Faço tudo”, enumera.
Ela acredita que a ideia de que as mulheres são capazes de fazer várias coisas ao mesmo tempo acaba oportunizando uma exploração ainda maior da mão de obra feminina nos ambientes de trabalho. “Quando você tem aquele pique igual ao que eu tenho na lanchonete pra trabalhar, eles aproveitam”, destaca.
Contratada pelo estabelecimento há uma década, o emprego foi o primeiro de carteira assinada depois de uma trajetória de 24 anos no mundo do trabalho – na maioria das vezes, como babá ou faxineira.
Ela celebra o fato de poder contar com um emprego formal, mas ressalta que a atividade não garante o sustento da família. O salário de R$ 1.100 é insuficiente para a manutenção da casa e dos cinco filhos que ainda dividem o teto com ela. Com isso, Nete precisa investir no trabalho informal, o famoso “bico”, para equacionar melhor as finanças.
“Mulher multiuso”
Diante de um contingente nacional de quase 13 milhões de desempregados, essa tem sido a rota principal daqueles que não vislumbram a chance de conseguir um trabalho mais qualificado. Segundo o IBGE, o número de pessoas que trabalham por conta própria no país aumentou 4,8% no espaço de um ano. São Josés e Marias que, assim como Nete, fazem pequenos – ou grandes – serviços, geralmente mal remunerados.
No caso da cozinheira, o bico principal é a venda de lanches, que antes se dava somente eventualmente e por encomenda e hoje virou rotina. Tapiocas, empadas e bolos fazem parte do cardápio que movimenta a cozinha de casa. Os produtos são vendidos diariamente por ela e por um dos filhos em escolas do bairro e rendem cerca de R$ 400 ao mês.
O incremento ainda não é suficiente para bancar as contas fixas do lar, pois somente de aluguel a cozinheira paga R$ 900, além de R$ 600 de supermercado e R$ 250 de outras despesas, como água, luz e gás. A isso se soma ainda o remédio de R$ 200 para o tratamento de uma trombose sofrida recentemente.
Além do trabalho semanal na lanchonete, Nete, que se define como “uma mulher multiuso”, vende comida numa feira popular aos sábados e faz serviços domésticos como diarista aos domingos para complementar a renda. Uma rotina cíclica e sem pausa pra descanso.
“Resolvi fazer isso pra ter uma rendinha, pra poder me ajudar em casa. Pra não morrer de fome, você tem que aceitar qualquer coisa”, desabafa.
Contas que não fecham
Somando todos os trabalhos, consegue arrecadar cerca de R$ 2.100 por mês. Ela acrescenta que o aumento da precarização nas relações de trabalho é sentido na pele por quem faz serviços domésticos. Diante da crise, muitas pessoas que contratam a diária de limpeza têm se recusado a pagar o dinheiro do ônibus como extra.
“Eles querem que a pessoa trabalhe praticamente de graça pra eles e não querem pagar”, critica.
O contexto tem feito com que a cozinheira enxugasse ainda mais as despesas de casa. O contrato de internet, comum às famílias de classe média, já era artigo de luxo pros filhos dela e foi o primeiro a ser cortado. A ginástica financeira inclui ainda redução de despesas com alimentação, água e luz. E a necessidade de sobrevivência estimula também a criatividade. Na falta de dinheiro, Nete passou a aproveitar o resto do óleo de cozinha para fazer barras de sabão caseiro. A façanha permite uma economia mensal de apenas R$ 12, mas o valor faz a diferença na vida de quem nunca sabe como vai terminar o mês.
Apesar do contexto árduo, Nete, a “mulher multiuso”, que relata já ter sofrido também preconceito racial e social nos ambientes de trabalho, não fraqueja diante das inúmeras dificuldades. E, em meio à rotina puxada, ainda encontra brecha na agenda aos finais de semana para escovar o cabelo, namorar e encontrar as amigas.
Feliz
“Você acredita que eu sou feliz assim e agradeço a Deus? Eu gosto do que eu faço. Eu me sinto uma guerreira por chegar nesse ponto”, exclama, iluminando o olhar.
Enquanto o sonho da casa própria ainda não é alcançado, Nete espera que o próximo passo da vida profissional seja uma formação na área de culinária “pra melhorar o serviço e dar um gás nas finanças”. Ela aguarda atualmente uma vaga num dos cursos do Senac em Brasília.