Governo diz que decreto que muda o nome do departamento de controle de ISTs fortalecerá política pública; entidades dizem que é retrocesso.
Depois de abolir o termo “violência obstétrica” em documentos de políticas públicas, conforme despacho de 3 de maio da Coordenadoria Geral de Saúde das Mulheres, o governo Jair Bolsonaro determinou a supressão do termo “Aids” na nomenclatura do Departamento de Vigilância, Prevenção e Controle das Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), do HIV/Aids. Conforme o Decreto 9.795, publicado no Diário Oficial da União, o nome passa a ser “Departamento de Doenças de Condições Crônicas e Infecções Sexualmente Transmissíveis”.
Referência mundial no tratamento às ISTs, o programa brasileiro parece ter sido rebaixado nas prioridades do Ministério da Saúde. O antigo departamento que era dedicado ao tratamento de HIV/Aids, hepatites e outras enfermidades sexualmente transmissíveis foi reestruturado, e será tratado junto com tuberculose e hanseníase, doenças com abordagem e enfrentamento diferentes, analisam especialistas.
Veriano Terto Jr., vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), avalia que um dos efeitos dessa medida pode ser a perda de autonomia de compra de medicamentos e negociação de preços. A questão dos medicamentos, segundo ele, poderá ficar atrelada à divisão farmacêutica no Ministério da Saúde. “Para um programa estruturado, de antirretrovirais, que precisa sempre ser revisto, a perda dessa atribuição pode ter implicações, por exemplo, com atrasos [de distribuição] nos medicamentos. Vai depender de um outro órgão. Assim também a negociação de preços [por meio da pressão popular], diretamente com empresas de genéricos e gerenciar o orçamento para isso”, detalha.
Amplitude do programa em risco
Além da questão dos antirretrovirais – “espinha dorsal do programa para a aids no Brasil” -, Terto disse temer que as áreas – coordenadorias ou departamentos – vinculadas à Secretaria Nacional de Vigilância Sanitária se restrinjam a ações de testagem, controle epidemiológico e encaminhamentos. O que gera uma incerteza sobre o futuro das campanhas de prevenção, sensibilização sobre as ISTs e luta contra os estigmas.
O decreto pode acarretar o fim de tratamentos mais modernos e de menor impacto para usuários, antes garantidos pela discussão com a sociedade civil.
Nas reuniões da Comissão Nacional de IST, HIV/Aids e Hepatites Virais (CNAIDS) e da Comissão Nacional de Articulação com Movimentos Sociais (CAMS), absolutamente nada se falou sobre o Decreto e nenhum esclarecimento foi prestado sobre suas potenciais consequências. “Me chamou a atenção isso [decreto] não ser mencionado, discutido na reunião. Mas não vamos achar que há um mês atrás isso já não estava articulado! Então, nos pareceu um golpe baixo”, disse o vice-presidente da Abia.
Ele acredita que dissolver o termo Aids no nome de doenças crônicas é esconder o problema. ”Aquilo que não tem nome não existe. Então, a gente estava até brincando, nem precisou atingir os 90-90-90 e nem vamos esperar até 2030, a Aids já acabou, já sumiu, pelo menos no nome”, ironiza Terto, ao referir-se ao pacto dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.
O movimento nacional de luta contra a AIDS, formado por redes, coletivos, organizações e ativistas, repudia o Decreto Nº 9.795. “É o fim do Programa Brasileiro de Aids”, diz a nota assinada pela Articulação Nacional de Luta contra a Aids (Anaids), Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), Fórum das ONG/Aids do Estado de São Paulo (FOAESP), Grupo de Apoio à Prevenção da AIDS/RS (GAPA/RS), Grupo de Incentivo à Vida (GIV) e Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e AIDS (RNP+Brasil).
A Sociedade Paulista de Infectologia (SPI) reforça o apoio ao Programa Brasileiro de Aids e ao trabalho que tem sido desenvolvido para a cura dos pacientes com hepatites crônicas virais, classificando-os como exemplo de política de saúde pública bem-sucedida. “O oferecimento do tratamento antirretroviral de forma universal e gratuito, incluindo a profilaxia pré-exposição ao HIV, é um grande exemplo para países que lutam contra a epidemia de infecção pelo vírus. Enquanto muitos países, a exemplo dos Estados Unidos, divulgam políticas para eliminar a transmissão do HIV nos próximos 10 anos, estamos vivenciando um retrocesso no Brasil”, destaca um dos trechos do documento da SPI.
Opinião similar é compartilhada pelo movimento nacional, que classifica a decisão do governo como “descaso com uma doença que mata cerca de 12 mil pessoas por ano e que, longe de estar controlada, continua crescendo”. Os signatários da nota que contesta a ação do governo, afirmam que: “mais do que um programa, esse Decreto acaba com uma experiência democrática de governança de uma epidemia baseada na participação social e na intersetorialidade”.
Outro lado
O Ministério da Saúde, por sua vez, diz que a nova estrutura regimental promove maior integração entre as áreas da pasta, “que busca reordenar ações e tomada de decisão das políticas públicas em favor da população e melhor gestão do Sistema Único de Saúde (SUS)”.
Ainda de acordo com a nota, “a reformulação foi identificada a partir de necessidades de implementar ações mais efetivas, eficientes e contemporâneas e está sendo realizada de forma a priorizar ações de assistência à saúde da população por meio das melhores evidências científicas e da incorporação das tecnologias que trazem benefício à população, sempre visando tornar mais eficaz o gasto público”.
A pasta também frisa que “a estratégia de resposta brasileira ao HIV não será prejudicada com a reestruturação da Secretaria de Vigilância em Saúde”. E que com a permanência de Gerson Pereira, “médico epidemiologista e servidor público federal do Ministério da Saúde, à frente do departamento, a Secretaria de Vigilância em Saúde reitera a continuidade e valorização das políticas públicas”.
Com relação à inclusão da Aids com outras doenças, o ministério explicou se tratar de doenças comuns nas populações com maior vulnerabilidade e com os mesmos condicionantes sociais. “Além disso, o HIV/Aids, a tuberculose e a hanseníase possuem características de doenças crônicas transmissíveis, com tratamento de longa duração, o que permite uma integração das ações. As pessoas vivendo com HIV, por exemplo, têm maior risco de desenvolver a tuberculose, além de ser um fator de maior impacto na mortalidade nesses casos. Também é comum que o diagnóstico da infecção pelo HIV seja feito durante a investigação/confirmação da tuberculose”, pontua a nota.