Notícias

A história tem que ser respeitada, defende filha de Zuzu Angel

Hildegard Angel recebeu as certidões de óbito que responsabilizam o regime militar pela morte de sua mãe e irmão

“Causa mortis: Em razão de morte não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política do regime ditatorial de 1964 a 1985.”

Com essas palavras, as certidões de óbito de Zuleika Angel Jones, conhecida como Zuzu Angel, e de Stuart Edgard Angel Jones, agora registram que a ditadura militar brasileira é a responsável pela morte da estilista e de seu primeiro filho.

Os documentos foram retificados e emitidos novamente pelo 8º Registro Civil de Pessoas Naturais do Rio de Janeiro na última sexta-feira (6), com base em sentença da Justiça fluminense.

Militante do Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), Stuart Angel foi preso, torturado e assassinado por militares em 14 de junho de 1971, na base aérea do Galeão, no Rio de Janeiro. O jovem de 25 anos tornou-se um dos mais de 400 desaparecidos da ditadura militar brasileira.

Nos anos seguintes, Zuzu denunciou de forma incansável o sequestro de seu filho, utilizando, inclusive, desfiles de moda para criticar as atrocidades do regime. Cinco anos depois, em abril de 1976, foi assassinada em um atentado planejado por militares ao dirigir pela Estrada da Gávea, no Rio de Janeiro. O antigo túnel Dois Irmãos, hoje leva o nome da estilista.

Direito à memória

A retificação na certidão de óbito do diplomata José Jobim em outubro do ano passado, também assassinado pela ditadura militar, motivou Hildegard Angel, filha de Zuzu e irmã de Stuart, a seguir todas etapas necessárias para conseguir as alterações no documento de seus familiares.

A mudança está prevista em resolução publicada em dezembro de 2017 pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) que estabeleceu os procedimentos necessários para a emissão dos atestados de óbito corrigidos. 

Mesmo décadas após a morte de seu irmão, Hildegard nunca aceitou um documento que o considerasse apenas um desaparecido.

“Isso não satisfazia aos propósitos da memória do Stuart. Quando surgiu a possibilidade de uma certidão que reconhecesse que ele foi morto pelo Estado, em dependências do Estado, fiquei muito entusiasmada”, afirma a jornalista em entrevista ao Brasil de Fato.

Apesar de já ter em mãos uma certidão de óbito de sua mãe, o documento em questão também não apresentava a causa real da morte de Zuzu. Ela se apressou, então, para pedir as retificações das duas certidões.

“Isso pra mim é um grande conforto. Com todos esses anos, apesar de duas comissões nacionais terem concluído que minha mãe foi efetivamente morta por agentes do Estado, pela ditadura, pessoas desavisadas da imprensa insistem em escrever que ela foi morta em um acidente por causas não esclarecidas como se o assunto não estivesse concluído”, conta Hildegard.

“É uma grande oportunidade para que a história do Brasil seja escrita da maneira correta, sobretudo nesses tempos em que se está tentando perverter a história. Há poucos dias recebi uma foto de uma página de um livro de história em que contam a história da minha mãe diferente, omitem que ela foi assassinada. Isso tudo já é um reflexo do Brasil desse momento, orientado pelos atuais líderes”, critica a jornalista.

Ela teme que sob o governo do presidente Jair Bolsonaro (PSL), notório entusiasta da ditadura militar, se perpetue uma revisão histórica que consiga apagar a memória e a luta daqueles que entregaram a vida em defesa da democracia. 

“Quando o presidente da República contesta, ele cria a dúvida. Estabelece a semente da dúvida em uma geração menos informada que não viveu os efeitos gravíssimos da repressão. Ela começa a duvidar da verdade, conta-se uma nova versão. É como se estivéssemos na Alemanha e houvesse um presidente pró-Hitler que resolvesse estabelecer uma nova história para a Alemanha. A história tem que ser reposta. A história tem que ser respeitada”, defende Hildegard.

Ode à ditadura

A jornalista relembra ainda que em outros países latino-americanos que enfrentaram ditaduras, houve um processo consolidado de reparação histórica dos crimes cometidos pelos militares, o que não aconteceu no Brasil.

“Temos que ter resistentes que se empenhem em manter a história do Brasil em seu devido lugar. O povo reage quando vê contestada sua história, como vimos agora a repercussão no Chile”, comenta, em referência ao repúdio dos chilenos à declaração feita por Bolsonaro na semana passada.

O político do PSL elogiou a ditadura militar chilena, liderada por Augusto Pinochet, e atacou a ex-presidenta do Chile e atual alta comissária para os Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet. Segundo Bolsonaro, o regime chileno deu “um basta em comunistas” como o pai da ex-presidente, o brigadeiro Alberto Bachelet, torturado e assassinado em 1974.

Em agosto deste ano, o governo trocou 4 dos 7 integrantes da CEMDP, que trabalha no reconhecimento de mortos e desaparecidos da ditadura militar. A procuradora Eugênia Gonzaga, que presidia a comissão e autorizou a retificação das certidões de Zuzu e Stuart, foi uma das afastadas. Na ocasião, o presidente justificou a medida afirmando que “o Brasil agora tem um governo de direita”.

::Ministério de Damares desmente Bolsonaro: Santa Cruz foi assassinado pela ditadura::

Neste cenário, Hildegard avalia que ações que busquem o direito à memória e à justiça encontrarão mais empecilhos. “Lamento pelas pessoas que agora queiram suas certidões, e que têm todo o direito, e certamente terão mais dificuldade depois que a Eugênia foi exonerada. Foi um grande alívio para mim [receber os documentos retificados]. Não imaginávamos que o Brasil fosse entrar nessa espiral de retrocesso”.

Ela cita a perseguição a uma obra da Bienal do Livro no Rio, que exibia o desenho de um beijo gay, como um exemplo de censura dos tempos atuais. Marcello Crivela, prefeito da cidade, pediu que os livros fossem apreendidos. Após vaivém do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ), Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu a decisão que permitia a apreensão dos livros. 

“Temos que estar atentos a tudo isso. Minha geração viveu isso. Eu sei o que é, eu sei o sofrimento. Eu sei o que significa a perseguição e já sinto isso agora. Já sinto pessoas reticentes, que evitam falar abertamente, que evitam quem não concorde com seu pensamento, que evitam estar próximos de quem pode comprometê-las aos olhos do poder”, relata.

“Já chegamos nesse momento, infelizmente. Já chegamos nesse momento triste. Me sinto reviver situações daquela época”, lamenta Hildegard.

Deixe um comentário