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A psicanálise diante do quebra-cabeça inacabado do Brasil

Tales Ab’Saber escreve sobre o novo livro da psicanalista Maria Rita Kehl: “Bovarismo brasileiro”

No processo conturbado e por vezes enganador da democracia brasileira dos últimos trinta anos, no embaralhamento das cartas culturais e dos valores fetichistas por uma cultura de mercado total, simultânea ao real atraso cidadão em reequilibrar a igualdade econômica e os direitos populares, surgiu a novidade crítica – em parte realização, em parte sintoma social – da presença do psicanalista como intelectual público no tempo.

Participando ativamente de uma hermenêutica social e humana de nosso mal geral, tentando conceber o sentido dos impasses regressivos e da permanência da violência como cultura no país, em uma esfera estranha e nova da ordem política que ele nomeava a partir da noção freudiana de inconsciente, mas também precisando dar conta de uma variação histórica e contemporânea que o conceito clássico de fundação da psicanálise sofria entre nós, o psicanalista, em sua ação pública e cultural no Brasil da redemocratização, parecia oscilar entre produzir “imagens do inconsciente” que pudessem desalienar as violências do presente, entender o impacto do “caso Brasil” sobre nossa vida e constituição subjetiva e, a partir de sua formação, pesquisar e nomear a própria existência simbólica nacional, radical e outra, do objeto chamado Brasil.

Agia, assim, nas esferas da clínica, da história e da intuição social, sobre o enigmático, moderno, maníaco, falso, ainda novo e sempre violento, muito violento, espaço social brasileiro. Os psicanalistas que vieram a público trabalharam nesse espaço social em constituição, embora muito constituído, entre a norma do poder e as criações da vida.

Diferente dos próprios padrões de ciência e de conceitos modernos de sujeito e sociedade em que a sua disciplina foi formada na realidade europeia, a situação de incompletude e de extrema alteração dos valores de base do processo ocidental moderno que eram matéria corrente e comum no Brasil exigiu dos psicanalistas uma grande e heterogênea movimentação conceitual: a nova “construção” de referências, inclusive a respeito da história do país, a tradição de leituras literárias e sociológicas de nossa subjetivação, da institucionalização política e da vida cultural, por vezes planos cindidos das coisas brasileiras, bem como a reflexão sobre a posição de comprometimento social do próprio analista. Assim, tentava-se dar conta desse espectro que é a vida subjetiva sobre a ordem da diferença histórica brasileira. “O quebra-cabeça inacabado do Brasil”, como diz Maria Rita.

Maria Rita Kehl é precursora e fundadora desse movimento hermenêutico social e cultural singular dos psicanalistas com o Brasil. Sua longa pesquisa nesse campo – que somos nós – é exemplar do comprometimento de uma ideia política de psicanálise com a história de nosso espaço social e simbólico e também das grandes dificuldades que essa aventura política do conhecimento, entre psicanálise e cultura, põe para cada um de nós. Em Bovarismo brasileiro, podemos acompanhar seu amor ao universo histórico da subjetivação no Brasil e sua ampla tentativa de localização nesse universo, o efeito da outra modernidade brasileira sobre a nossa produção cultural e simbólica tão particular e sobre uma psicanalista de forte engajamento democrático e social que, desde a década de 1980, se apresentou ao mundo com lucidez.

É bonito observar como as longas jornadas de pesquisa pelas figuras da subjetivação brasileira – a “alucinose” do sistema de ideias não coincidente consigo mesmo de nossa fantasiação bovarista, a história da vida popular no samba e suas muitas formações de sentidos brasileiros, a história social e de poder político da TV brasileira, na sua condensação e equivalência com a Globo e suas formas simbólicas – prepararam a psicanalista Maria Rita Kehl para o trabalho de militância da psicanálise como clínica entre membros de movimentos sociais. E como a escuta livre e animada naquela clínica, de empatia social e com o inconsciente ao mesmo tempo, é processo de compreensão de uma jornada na cultura que participa do trabalho, tanto quanto as posições inconscientes que um sujeito assume em relação a seu próprio mundo. Mundo que, a seguir o exemplo de Maria Rita Kehl, os analistas não podem mais desconhecer ou desprezar, para serem cidadãos da própria psicanálise, ou críticos e clínicos da própria cultura.

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