Tragédia em Goiânia reacendeu debate sobre bullying nas escolas. Para o professor de psicologia da USP José Leon Crochik, formação de nossa própria sociedade explica o tema
São Paulo – Na tarde do dia 20 de outubro, uma sexta-feira, professores e pesquisadores de diversas universidades brasileiras e estrangeiras estavam reunidos no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), naquele que era o último dia de um seminário intitulado “Teoria Crítica: violência e exclusão social”. Ao longo da semana, uma extensa programação havia debatido temas como tipos de violência, violência escolar, bullying no ensino fundamental, bullying no ensino médio, entre outros.
“O seminário começou discutindo a questão da inclusão escolar e profissional, o bullying no ensino fundamental e superior e terminou com a teoria crítica e violência. As discussões foram muito boas, aprofundadas, com colegas de diversos estados do país e do exterior”, recorda José Leon Crochik, professor do Instituto de Psicologia da USP e coordenador do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito, departamento organizador do seminário e cujos estudos são focados na violência escolar, teoria crítica e violência.
O nível dos debates e a qualificada presença de estudiosos encerrava com sucesso a semana de seminário quando chegou a notícia de que um garoto de 14 anos, em Goiânia, havia acabado de abrir fogo contra seus colegas de sala de aula.
“A gente estava na sexta-feira à tarde quando veio uma colega e relatou pra nós o que havia acontecido em Goiânia. E assim terminamos o seminário”, diz José Leon, com um certo tom de lamento pelo clima com que o evento se encerrou.
Usando como referencial teórico em suas pesquisas a Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, em especial as obras de Adorno, Horkheimer e Marcuse, o coordenador do Laboratório de Estudos sobre o Preconceito acaba de lançar o livro Bullying, preconceito e desempenho escolar: uma nova perspectiva.
O livro é resultado da pesquisa sobre bullying no ensino fundamental, aplicada por pesquisadores da Universidade Federal do Pará, Universidade Estadual da Bahia, Universidade Estadual de Londrina, Universidade Estadual de Maringá, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Universidade de Roraima, além de uma instituição de ensino superior de Buenos Aires. Outra pesquisa, essa ainda em andamento, investiga agora o bullying no ensino superior e está sendo aplicada em São Paulo, Argentina (Buenos Aires), Portugal (Braga), México e Espanha.
Nesta entrevista para a RBA, José Leon Crochik aborda alguns aspectos revelados nos estudos sobre bullying no ensino fundamental e superior, como a ideia de hierarquia oficial e não oficial, as características da personalidade dos agressores, o papel da família e da escola e a influência da sociedade sobre a violência individual.
“A estrutura da escola reflete a estrutura da sociedade, então, para entender a violência na escola tem que entender a violência social”, afirma José Leon.
Como é ver os estudos teóricos se materializando na prática, como foi esse caso em Goiânia?
Essa notícia que tivemos, como foi a de Realengo (Rio de Janeiro) há alguns anos, chocam a gente. Não dá pra ficar indiferente, mas nos dá a relevância do que temos pesquisado. As pesquisas são indiretas, fazemos entrevistas, temos questionários e escalas que são aplicadas a alunos, professores e gestores da educação. Quando a gente conversa com gestores e educadores, eles nos respondem e já pensam no dia a dia, sobre educação inclusiva, preconceito e bullying, porque eles vivem isso e a pesquisa é uma oportunidade deles refletirem mais sobre o tema. Pra nós, felizmente em alguns momentos, tem tido um papel importante. Nossa intenção é pesquisar e tornar público os resultados, para que as pessoas então possam considerar os resultados e interferir na prática. Nesse sentido, já tem esse efeito. Há outra ação que a academia tem que é importante, mas que não é imediata, é que a gente vai acumulando conhecimento ao longo do tempo.
Num primeiro momento, o que pode se compreender do que houve com esse menino em Goiânia?
Todos os envolvidos no bullying escolar estão em formação. Então para entender e enfrentar o problema cabe, sobretudo, medidas educativas. Isso é um ponto central. No caso de Goiânia há a questão do Direito, que deve entrar. Mas no dia a dia, quando não se chega a extremos como nesse caso de Goiânia, são pessoas em formação e cabe, como educadores, pensarmos o que está acontecendo com os alunos para que eles se tornem agressores.
Por que esses casos de violência extrema são mais praticados por meninos?
Em geral, são mais meninos que praticam o bullying. O tipo de prática de bullying das meninas é diferente dos meninos, para elas é mais comum boato e exclusão. Para os meninos é mais xingamento e agressão, é mais físico. O bullying tende a ficar mais sutil ao longo do tempo. Na quinta ou sexta série, entre os meninos, é mais agressivo, mais físico. Da sexta até o ensino médio ele tende a se tornar mais verbal, mais simbólico. Depois na vida adulta, o assédio é o bullying, é mais sutil, mas não deixa de existir.
Os pais desse menino são policiais e ele usou uma arma que estava em casa. Qual a influência da estrutura familiar para que algo assim aconteça?
Muitos estudos falam da importância da estrutura familiar e características de personalidade, e nós não temos desconsiderado esses fatores, mas temos pensado sobre como a estrutura da escola, de alguma forma, corrobora e estimula essa forma de violência escolar por meio das suas hierarquias. A estrutura da escola reflete a estrutura da sociedade, então para entender a violência na escola tem que entender a violência social. A escola tem, em si mesmo, uma hierarquia oficial, que são os bons e os maus alunos em sala de aula, e uma hierarquia não oficial, que são aqueles alunos “populares” e “não populares”, ou seja, aqueles que se dão bem em esportes coletivos, nos namoros e em brigas, no caso dos meninos, e as meninas que são populares porque são desejadas pelos meninos, então é uma hierarquia não oficial.
Nossa hipótese, que tem sido confirmada como tendência, apresenta quatro tipos: os melhores e os piores em sala de aula, como mais populares e impopulares na hierarquia oficial, e os melhores e piores em educação física, populares e impopulares na hierarquia não oficial. Aquele que é melhor na hierarquia não oficial, ou seja, que se dá bem em esportes coletivos, em brigas e namoros, ele tende a ser autor do bullying. Aquele que é pior na hierarquia não oficial, tende a ser vítima do bullying. O melhor na hierarquia oficial, não é nem autor e nem vítima, e os piores na hierarquia oficial, são tanto autores quanto vítimas.
O que essa descoberta significa para os educadores?
Há ainda o cruzamento entre as hierarquias. Os alunos que são piores na hierarquia oficial, mas melhores na educação física e mais populares, são autores do bullying, enquanto os que são piores nas duas hierarquias, são vítimas do bullying. Esse dado para nós é valioso, porque daí já vem a indicação de que, se nós educadores pudermos dar maior atenção para aqueles que têm mais dificuldade em aprender, provavelmente boa parte dessa violência tende a desaparecer ou ser minimizada. Outro dado importante é que, em geral, o autor da agressão é menos sensível, ele é mais grosseiro, ele não percebe que aquilo que está fazendo pode machucar o outro e fazer sofrer. É aquela ideia comum do ‘é brincadeira’. Por outro lado, a vítima do bullying é mais sensível, e mesmo quando reage, ela acha que essa reação é violenta e se sente mais culpada do que o autor do bullying.
Estamos falando, ao longo da história, de um declínio da formação do indivíduo, no que diz respeito a autonomia, quer moral ou intelectual, o desenvolvimento cultural, uma cultura que propicia a competição e a violência. Desenvolver a inteligência é poder distinguir, diferenciar. Quanto mais inteligentes nós somos, mais sensíveis somos as diferenças, e quanto menos desenvolvemos a capacidade de pensar, somos mais grosseiros e não percebemos o outro. É um processo social e que na escola aparece e leva os alunos a não se desenvolverem individualmente.
Qual o papel da família nesse contexto?
A disputa entre família e escola se mantém. Nessa área do bullying, os professores reclamam de que os pais não educam os filhos e então eles são indisciplinados na sala de aula. E os pais dizem que os professores têm pouca autoridade e por isso os filhos são bagunceiros. Um joga a culpa pro outro. Hoje, por diversos motivos, as famílias se alteraram, as mulheres trabalham fora e ambos, pai e mãe, estão muito fora de casa, e desde muito cedo as crianças vão pra escola. Então a escola tem assumido um papel maior do que antigamente. Há uma compreensão de que a escola não deve formar apenas quanto a conteúdo, mas também do ponto de vista moral e político. Se a família dá uma boa formação, ótimo, mas em outras vezes não há condições de dar. Quando a escola nota que isso acontece, deve repor o que não houve, não dá pra fazer de conta que nada está acontecendo. Se há situação de violência na escola, se deve ficar atento. Não dá pra ficar indiferente e nem pensar que é só responsabilidade da escola, mas como a violência acontece na escola, ela deve ter formas de pensar e dar algum encaminhamento para isso. A escola tem que assumir esse papel. Se a família faz bem feito, ótimo, se não faz, a escola tem que assumir, até como uma instituição formadora e, por excelência, uma das mais importantes da sociedade. Claro que, como pais, somos sempre responsáveis, mas compartilhamos.
Escolas e educadores estão preparados para agir nesse tema?
Comparamos a percepção que os gestores e educadores têm do bullying e as ações que eles propõem para combater isso. Aquelas escolas em que os gestores e educadores têm uma perspectiva mais individualista e entendem que o bullying é mais relacionado à personalidade do autor e da família, tendem a tomar ações mais imediatas, como repreender o aluno, chamar o conselho tutelar, pedir para os meninos darem as mãos. Aquelas escolas que tem uma visão mais ampla e entendem que a violência na escola só pode ser compreendida se associada a violência social, elas têm uma forma de agir mais preventiva e ampla. Pedem, por exemplo, para os alunos fazerem pesquisas e estudos sobre o assunto, e assim já se cria um clima cultural na escola. Esses educadores dão atividades de forma a combater e já prevenir esse tipo de violência. A maneira de pensar desses educadores é fundamental. Então, dependendo do entendimento que se tem, se pode levar pra um lado ou pra outro.
O bullying é uma forma de preconceito?
A ideia do bullying como violência é destruir o outro, primeiro por meio de humilhação ou xingamento. Uma vez que se destrói essa autoestima individual, o outro está submetido a sua vontade, se sente humilhado, derrotado. Algumas vezes reage de forma violenta, em outras não. Aquilo que envolve a autoria do bullying, é algo forte, pesado. Ao contrário do preconceito, o bullying não tem o objeto bem delimitado. O preconceito se volta para um objeto definido, que também nunca tem culpa, o negro, por exemplo, não tem culpa da violência que se volta contra ele, o mesmo com as mulheres. No caso do preconceito, você tem elementos que pertencem a minorias e que são atacados por isso. No bullying não, é quem pode submeter. O autor do bullying tem uma necessidade distinta do preconceituoso e a necessidade dele é do domínio pleno e completo sobre o outro, e não importa quem é esse outro. Por isso é algo que acaba sendo mais perigoso do que o preconceito.
Como o bullying tem se modificado ao longo do tempo?
A ideia da intimidação, de dar medo, já era clara, visível (em outras épocas). Muito daquilo que hoje chamamos de bullying diz respeito ao sujeito pouco desenvolvido, que precisa descarregar a fúria das suas frustrações em quem puder. O autor do bullying reage a uma situação dele de impotência também. Há semelhanças nessa forma de violência destrutiva, sem objeto fixo. Mas há distinções dos mecanismos pelos quais a violência pode ser exercida. O cyberbullying hoje é devastador. Ele pode acontecer uma única vez, mas dura pra sempre. Uma vez que caiu na rede, não tem como apagar, e a vítima sempre vai se sentir perseguida porque sabe que pode aparecer de novo, seja um vídeo, uma foto. Antigamente quando se sofria uma violência na escola, havia a ilusão de que era só mudar de escola e estava resolvido o problema. O que era uma ilusão mesmo, porque a violência nos acompanha aonde quer que a gente vá. Outro elemento que notamos nas nossas pesquisas, é que os alunos que se saem melhor em sala de aula tendem a não ser nem autores e nem vítimas de bullying. Talvez pelo fato de que aqueles que se saem bem na educação formal são mais respeitados. Enquanto antigamente eram chamados de “nerds” ou “c.d.f”, e eram de alguma forma ridicularizados, hoje já existe um certo respeito, ou porque a escola valoriza eles ou porque ser um bom aluno significa se dar bem na vida, ou ainda porque esses que são os melhores em sala de aula são bem adaptados. Eles não são necessariamente críticos, mas seguem bem as regras e acabam se dando bem na escola. Agora, esse efeito destrutivo, que começa com a ideia de ser uma brincadeira, já tem a intenção de destruição, de saber que ele machucou o outro, não é necessariamente o interesse no sofrimento do outro, mas por ele ter causado o sofrimento do outro.
No caso do ensino superior, o que as pesquisas têm revelado?
Um dos dados que temos é sobre os papéis que as pessoas têm no bullying ao longo do tempo. Pensamos em quatro papeis: o autor do bullying; aquele que dá apoio à agressão; aquele que observa; e aquele que sofre. Verificamos isso no ensino fundamental II, médio e no ensino superior. Um dos resultados que temos é que as pessoas tendem a manter o papel do bullying do ensino fundamental para o médio. Já no superior muda. Quem tende a ser agressor no ensino fundamental, continua sendo agressor no médio; e quem tende a ser vítima no fundamental também continua no ensino médio. Mas no ensino superior se altera e temos pensado que, se faz sentido a hipótese das hierarquias, e como o ensino superior é seletivo, é uma minoria que consegue entrar, já que a maioria dos estudantes está fora do ensino superior, se parte dos que estão fora poderiam estar mais na hierarquia não oficial do que na oficial, então é claro que no ensino superior, mais dos alunos da hierarquia oficial estarão presentes e menos aqueles que eram os populares por meio de esportes, brigas e namoros. Esse é um dos elementos, aqueles que estão no ensino superior tendem a pertencer a hierarquia oficial.
As pesquisas abordam ainda as características de personalidade, como é isso?
Estamos verificando a relação em ser praticante ou vítima do bullying e as características de personalidade. E um dado interessante é que, aqueles que tendem a ser preconceituosos, tendem também a ser ou narcisistas ou sadomasoquistas. Sendo que na psicanálise o narcisistas é mais regredido do que o sadomasoquista. E o autor do bullying tende a ser mais narcisista, considerando que o narcisista tem pouca delimitação entre o “eu” e o “meio”, o mundo é o lugar para ele satisfazer seus desejos e o outro não importa. Outro dado que verificamos é o quanto os estudantes são adeptos de uma ideologia da racionalidade tecnológica, o que significa pensar o mundo como um sistema e que podemos resolver os problemas do mundo por meio de técnicas e especialistas. E o que temos verificados é que, em geral, aqueles que são mais praticantes do bullying, são também mais adeptos dessa forma de pensar. Quem pensa mais sistematicamente, mais tecnicamente, tende a ser mais frio e, portanto, mais violento.
Voltando ao caso de Goiânia, ao contrário de outros semelhantes, dessa vez o garoto que atirou nos colegas está vivo. Como deve ser o diálogo para compreender suas razões?
Só conhecemos o caso por meio da imprensa, com poucos elementos, então é difícil falar especificamente. Mesmo assim, nesse caso e em casos similares, embora ele não tenha se matado, a vida dele está interrompida, será outra daqui pra frente. Há a esfera do direito, que deve andar, e há essa outra, mais humana, que envolve um menino de 14 anos ainda em formação. O que tem que se pensar junto a ele e aos outros que sobreviveram, é o que pode ter levado a isso que parece ter sido uma obstinação temporária. Do que falam da cena, o primeiro ato contra o menino que ele dizia sofrer perseguição, esse ato foi intencional, mas os demais, parece que não foram, dá a impressão que ele se deu conta do que fez e perdeu o controle. O que cabe fazer, de preferência antes de acontecer esse tipo de coisa, é pensar o quê a sociedade tem gerado pra suscitar esse tipo de violência, que tipo de formação nós temos, uma formação que não é para a sensibilidade, não é uma formação pra também considerar os interesses dos outros, um outro igual a nós. O que tem acontecido na sociedade e na escola para esse tipo de ato? Porque ele não reflete apenas a violência individual, essa violência individual expressa a violência social. Se formos entender só do ponto de vista individual, nosso alcance é pequeno. É fundamental associar essa violência individual a uma violência mais geral.