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Carnaval paulista das minorias mostrou o que seria uma cidade linda

Entre os mais de 300 blocos que ocuparam as ruas de São Paulo neste ano, o protesto e o ativismo político deram voz às minorias, permitindo a afirmação de suas identidades

São Paulo – Nos mais de 300 blocos do carnaval paulistano deste ano, não faltaram foliões ativistas que disputavam atenção e voz, cada qual com sua cartada de humor. Teve fantasia de “coxinha” com a camisa amarelinha e panela na mão. Outro grupo formava um muro cinza escrito “cidade linda”, em alusão às ações de marketing que marcaram o início da gestão do prefeito João Doria. “Fora Temer”, então, teve mais do que “mamãe eu quero”. Mas não eram apenas fantasias em alusão à política “com P maiúsculo” que formavam o corpo de resistência democrática. Foi também a festa de transformação das minorias em maiorias.

Manifestações de afirmação étnicas, religiosas, linguísticas, de gênero ou idade se apropriaram do carnaval de rua. E organizaram um rito próprio de ocupação dos espaços públicos, de resgate da história e identidade, de exercício da livre expressão. E de valorização de uma das grandes marcas da cidade de São Paulo: a energia da diversidade.

Para uma grande massa de paulistanos, o carnaval não foi pausa: foi outra forma de lutar. A reportagem tentou saber de alguns foliões, entre confetes e serpentinas: o que seria uma cidade linda para você?

Gente miúda

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No bairro das Perdizes, o Bloquinho de Gente Miúda parecia arrancar personagens de desenho animado de dentro das casas. Fundado em 2016 pela cantora e artista educadora Kel Figueiredo, junto com o produtor musical Manoel Filho, a proposta de explorar canções infantis consagradas nas décadas de 1970, 80 e 90 no ritmo de carnaval deu certo. Peter Pan, Alice, Batman e Pequena Sereia mergulhavam ou voavam pelas ruas.

O que essas figuras criativas imaginam que para a cidade? “Mais piscina de bolinha!”, reivindicou o pequeno Jô, 2 anos. “Mais espaços de lazer esportivo gratuitos”, respondeu a mãe, Luiza, 36, para quem São Paulo até conta com boas opções de lazer cultural, o problema é o abandono. “Mais brinquedos e shoppings” até apareceu nas respostas de algumas crianças, mas o que prevaleceu foram os gritos por água, verde e natureza na cidade. “Um lugar não tão cheio de gente e com ar livre”, detalhou Ísis, 4 anos. O pai, Rafael, 35 anos, sonha para a filha com uma cidade menos confinadora e menos carros, onde as crianças possam se sentir pertencentes e também donas dos espaços públicos.

No debate familiar, as crianças às vezes surpreenderam os próprios pais. Enquanto a mãe respondia “mais parques e atividades ao ar livre”, a filha completava com “Sim! E ruas fechadas nos feriados e finais de semana”. “Mais parque, menos violência”, defendia Selma, mãe e ambulante, moradora de Cidade Tiradentes, Zona Leste.

Mulher e cultura negra

“Salve as guerreiras, mulheres brasileiras”, gritou a cantora e deputada estadual Leci Brandão (PCdoB), na largada do bloco Ilu Obá De Min naquela tarde de domingo (26), na Barra Funda. Numa bandeira se podia ler, “Respeitando a natureza, respeitamos os Orixás”. O corpo de baile e ritmistas do Ilú Obá De Min, que significa “mãos femininas que tocam os tambores”, é composto exclusivamente por mulheres.

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São cantoras e brincantes fantasiadas de Orixás que – a partir de expressões musicais, corporais e artísticas do candomblé, jongo, maracatu, ciranda, entre outras manifestações genuínas da cultura popular – exploram a diversidade afrodescendente. O trabalho busca por meio da arte, a afirmação da mulher, o fortalecimento das relações étnico-raciais e de enfrentamento ao racismo, ao sexismo, à discriminação, ao preconceito, intolerância e homofobia.

“Na diversidade está o poder da mudança”, gritava Beth Beli, líder do grupo. “É na diferença que aprendemos o respeito e o amor.” Para esses foliões que já se incorporaram ao patrimônio carnavalesco de São Paulo, a apropriação cultural é a grande pauta da cidade.

A polêmica, agora nas ruas, apareceu dias atrás com o post de uma menina branca que, sentindo-se censurada por usar um turbante na cabeça, lançou no Facebook a moda da hashtag #VaiTerTodosDeTurbanteSim. Pintar o rosto de preto e usar um turbante é um desrespeito”, afirmou Luiza, 25 anos, uma das duas bailarinas negras. “Ser negro não é uma escolha.”

Julio Cesar, 30 anos, vestido de Oxossi argumentava: “A apropriação cultural é ruim, nos leva à perda de identidade. A igreja evangélica hoje tem mais negros do que os terreiros de candomblé. E se não sabemos de onde viemos, não vamos a lugar nenhum”, acredita. Para ele, que afirma ser descendente de escravo de diamantes, “uma cidade linda é uma cidade com redistribuição da riqueza”. Uma senhora foliã branca que assistia ao show entrou na conversa: “Se você tem uma política voltada para a minoria, você consegue realizar medidas para todos os setores”. A mulher ao lado dela acha que o foco deve estar na educação: “É preciso pautar as minorias na escola. O que a gente aprende quando criança, nunca mais esquece”.

Enquanto isso crianças negras e brancas vestiam batas africanas e tocavam agogô, xequerê, djembé na linha de frente das ritmistas. Entre as integrantes do Ilú estão negras e brancas em número equilibrado, mas a voz de comando está sempre com as mulheres negras. “Empoderamento das mulheres”, “resistência” e “amor”, foram as palavras de ordem do bloco que, com o coro e os batuques afros ao longo, tocavam fundo os corações.

Refúgio e arte

Eu sou Fuá, do cabelo emaranhado,
Da caatinga, do cerrado, minha boca quer falar
Eu sou Fuá, sou negro afeminado,
Não vim pra ficar calado, minha boca quer gritar

Na simplicidade das ruas do Bixiga, o Bloco do Fuá – Onde as Minorias são Maioria desfilava uma profusão de tribos urbanas. Crianças e adultos, pobres e ricos, pretos e brancos. O carro de som todo diversidade: bandeira LGBT, dos nordestinos, índios, palestinos, refugiados, negros e mulheres. Entre os foliões, uma bandeira da Palestina cobria boa parte da rua. Os palestinos pulavam com entusiasmo, enquanto gritavam “Fora, Israel”.

E como seria a cidade linda para esses refugiados e imigrantes? Mohamed, refugiado palestino de 27 anos, antes de mais nada, assinalou a gratidão: “Sou muito grato a São Paulo. O Brasil foi o único país que abriu voluntariamente a porta para nós. Todos os países árabes fecharam”, ressaltou, para em seguida ponderar sobre o preço alto dos transportes e do aluguel.

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Para Indra, de 25 anos, baiana residente em São Paulo que viveu 10 anos na Palestina, uma cidade linda seria uma cidade que “não tivesse a tolerância apenas na retórica, mas também em medidas concretas e materiais”. “Falta  um centro de línguas, programa verdadeiro de inserção dos refugiados na cidade, programas mais assertivos para essa minoria. Meu sonho é que São Paulo se torne um exemplo nesse sentido”, afirma ela, tradutora voluntária da Cáritas, entidade ligada à igreja católica.

Enquanto isso, no pé do carro de alegórico, Rose de Almeida, toma a atenção das multidões gritando: “A cada hora uma mulher é espancada! E nós, mulheres negras, somos as maiores vítimas de estupro. Enquanto os indicadores de estupro caem entre as brancas, os nossos sobem”.

Para a atriz foliã Ângela, 40 anos, uma cidade linda é aquela em que os políticos não impõem as coisas de cima para baixo. “Como pintar arbitrariamente de cinza os muros grafitados”, diz. Flávia, 40 anos, que toca na bateria, concorda: “Cidade linda é aquela sem censura na arte e na comunicação. Com a cobrança de taxas, para participar do carnaval de rua, os grupos minoritários não poderão participar. E isso será uma violação ao direito da livre manifestação de pensamento e da diversidade destes grupos nas ruas e, portanto, a impossibilidade destes participarem ativamente da cidade”.

O carnaval provou ser não apenas tempo e espaço de festa passiva. É festa ativa, é festa das ruas. Arte e comunicação ocuparam espaços como nunca nessa temporada de democracia tão maltratada, em busca de cidade linda de verdade. De quebra, respondeu à tentativa do prefeito recém-chegado de confinar o carnaval de rua dentro de um sambódromo. Afinal, como escreveu a escritora e ativista canadense Jane Jacobs, “há um aspecto ainda mais vil que a feiura ou a desordem patentes, que é a máscara ignóbil da pretensa ordem, estabelecida por meio do menosprezo ou da supressão da ordem verdadeira que luta para existir e ser atendida”.

Confira os vídeos, clicando aqui, aqui e aqui.

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