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Crise, lei antimanicomial e medidas de segurança

Fundamental, a superação do modelo criado em 1984 pelo Código Penal e aplicação da lei antimanicomial para as pessoas sujeitas a medidas de segurança

O Brasil vive atualmente uma das mais graves crises de sua história democrática. Tem se formado um cerco às aspirações de construção de um Estado que implemente os objetivos da Carta Constitucional de 1988, comprovado pelos retrocessos que se sucederam ao golpe de 2016.

Nesse cenário de crise, ganham visibilidade o sistema de justiça criminal e, no campo dos direitos sociais, a saúde pública. Infelizmente, uma matéria diretamente ligada a esses dois sistemas ainda passa desapercebida da grande maioria da população, causando e agravando o sofrimento de inúmeras pessoas. Tratam-se das medidas de segurança.

Previstas no Código Penal e aplicadas a quem por ‘doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento’. Essas medidas podem ser de internação em hospital de custódia e tratamento psiquiátrico (conhecidos como manicômios judiciários) ou de tratamento ambulatorial. Elas ainda podem ter duração por tempo indeterminado, perdurando enquanto não for atestada a cessação da periculosidade.

Sem razão
O texto do Código Penal data da reforma de 1984, quando já eram públicas diversas denúncias de crueldades a que seres humanos eram submetidos em hospitais psiquiátricos, entre eles o Hospital de Barbacena, em Minas Gerais. Como de forma corajosa denunciou, no fim da década de 1970, o psiquiatra Ronaldo Simões Coelho. “No hospício, tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela deixa de ser gente.(…) O que acontece no Colônia é a desumanidade, a crueldade planejada. É permitido andar nu e comer bosta, mas é proibido o protesto”.

O documentário de Helvécio Ratton, Em nome da razão, de 1979, reproduzia uma realidade de outras tantas instituições análogas. Nele ressoa a frase de uma das pessoas entrevistadas que comparava aquela instituição ao purgatório, com a ressalva de que, no caso do hospital, as pessoas tomavam o caminho do inferno.

Em resposta a essa realidade, ganha impulso a luta antimanicomial, que tem como marco o Manifesto de Bauru, de dezembro de 1987, assinado por 350 trabalhadores de saúde mental, em seu II Congresso Nacional, afirmando-se como a primeira manifestação pública organizada no Brasil pela extinção dos manicômios.

Tratamento digno
Os avanços da luta antimanicomial redundaram em diversas iniciativas, entre elas a Lei 10.216, de 2001, conhecida como Lei antimanicomial, proposta ainda em 1987, pelo deputado mineiro Paulo Delgado e que, certamente, torna superado o Código Penal em relação às medidas de segurança.

A lei veda a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com características asilares. Prevê, ainda, a responsabilidade do Estado para o desenvolvimento da política de saúde mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais, com a devida participação da sociedade e da família.

Como consequência, somente nos anos de 2003-2010 (Governo Lula) a cobertura em saúde mental subiu de 21% para 66%, por meio dos Caps (Centros de Atenção Psicossocial). O processo de desinstitucionalização de pacientes psiquiátricos também teve grande expansão, garantido pela Lei 10.708, de 2003, que assegura auxílio reabilitação psicossocial para egressos de internação psiquiátrica superior a dois anos.

Foram fechados dezenas de milhares de leitos psiquiátricos de baixa qualidade, bem como, decretos presidenciais, a partir de 2008, passaram a conceder indulto a pessoas submetidas a medida de segurança por tempo superior à pena máxima aplicada pela lei penal. Além disso, o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária publicou Resolução nº 4, de 2010, para que o cumprimento das medidas de segurança ocorra “de modo antimanicomial, em serviços substitutivos em meio aberto”.

Apesar dos importantes avanços listados, conforme levantamento feito em acurado trabalho coordenado pelas professoras Debora Diniz e Janaina Penalva, em 2011, ‘as medidas de segurança são aplicadas em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs), também conhecidos como manicômios judiciários, ou em Alas de Tratamento Psiquiátrico (ATP) localizadas em presídios comuns, em estados que não possuam HCTPs. O Brasil possui 23 HCTPs e 3 ATPs em 20 unidades federativas diferentes’.

Retrocesso 2016
Nesse estudo de caso da aplicação de medidas de segurança nos estados de Goiás, Bahia e Minas Gerais, identificou-se, na pesquisa de prontuários com informações de processos judiciais e de execução de medidas de segurança, a incidência da menção à lei antimanicomial em apenas 4,7% dos prontuários.

O documentário A Casa dos Mortos, dirigido por Débora Diniz, revela, a exemplo do que fizera Em nome da razão, em relação aos hospitais psiquiátricos, a realidade de um manicômio judiciário, desvendando o quão distante o sistema de justiça está do modelo mais adequado de tratamento de pessoas sujeitas a medidas de segurança.

Infelizmente, a superação do modelo criado em 1984 pelo Código Penal, em direção das conquistas da lei antimanicomial, mostra-se ainda mais distante, seja por conta do descompasso do sistema de justiça criminal com os avanços desta lei, seja pelo retrocesso imposto após o golpe de 2016. Em dezembro de 2017, o governo suspendeu a política de fechamento de hospitais psiquiátricos.

Fundamental, portanto, a superação do modelo do Código Penal e aplicação das normas da lei antimanicomial para as pessoas sujeitas a medidas de segurança. Para isso é importante fortalecer a luta contra os retrocessos trazidos desde o golpe de 2016 e, ainda, cobrar do sistema de justiça sua conexão com os avanços da luta pela dignidade das pessoas em sofrimento mental.

 

* Gabriel de Carvalho Sampaio, advogado, professor de Direito Penal, foi secretário de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça (2014-2016), diretor nacional do Projeto Pensando o Direito (2014-2016), esteve no Conselho Nacional de Direitos Humanos (2014-2016) e no Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária (2016-2017).

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