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Da exclusão ao extermínio

Desde que o Brasil é Brasil, ou seja, desde que ganhou esse nome após a chegada dos colonizadores europeus, o país vivencia atos de violência cometidos ou autorizados pelo Estado e convive com suas consequências. Que o digam os povos originários e a população negra: as sequelas do sequestro, da escravidão, da tortura e da anulação de sua cultura continuam ecoando ainda hoje. Discutir as raízes históricas dessa brutalidade e a maneira como se manifestam no cotidiano atualmente são os focos da nova Campanha Estadual de Direitos Humanos do CRP SP, que tem como mote “Violência de Estado ontem e hoje: da exclusão ao extermínio”. Lançada em outubro durante evento realizado no Auditório do CRP SP, a campanha reitera o compromisso com a cultura de promoção e defesa de Direitos Humanos, que é um dos pilares assumidos recentemente pela psicologia brasileira.

A violência exercida pelo Estado – não apenas aquela exercida pelas forças de segurança pública, mas também a facilitada pelos Poderes constituintes do Estado (gabinetes, órgãos, serviços e políticas) – consegue impactar no cotidiano de indivíduos e coletivos. Não raramente e paradoxalmente, a violência de Estado tenta encontrar justificativa e apoio em discursos e argumentos de defesa de direitos. “Nesse jogo de ‘sinais trocados’ indivíduos e segmentos sociais são severamente oprimidos em nome da defesa de direitos e da garantia da lei e da ordem”, afirma o conselheiro do CRP SP Aristeu Bertelli da Silva, coordenador da Comisão Estadual de Direitos Humanos.

Exemplo disso está nas consequências das estratégias e políticas alinhadas pela lógica da “guerra às drogas”, da qual decorre um aumento da apreensão de adolescentes e do encarceramento de populações adultas, além das situações de torturas, maus tratos e letalidade exercida por forças de segurança.

As vivências de sofrimento atrelada a situações de violência de Estado são patentes e observáveis. Muitas pessoas e comunidades guardam em suas subjetividades, memória e história as marcas dessa violência. Diante de uma narrativa que exponha uma situação de violação de direitos, seja na escuta, no atendimento e nos apoios clínicos ou no exercício de políticas públicas, compete ao ético exercício profissional ser sinal de contradição. As possibilidades de atuação da Psicologia, ciência e profissão, não podem ser resumidas ou traduzidas em conformismo. “Elogios à formosura e beleza do tecido e das roupas quando o rei está nu é o exato jogo de um exercício profissional conformista e da construção de uma ciência acanhada, portanto, alinhada à violência de Estado”, diz Aristeu, acrescentando que apontar as incoerências e inconsistências, romper a banalidade e denunciar a naturalização dos processos de sujeição e violação de direitos representam a ética prática da Psicologia.

Histórico de defesa dos Direitos Humanos

A conselheira presidente do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo, Elisa Zaneratto Rosa, ressalta que a atual gestão se reconhece como parte de um coletivo que nos últimos anos se posicionou de forma inequívoca pela defesa dos Direitos Humanos e que defende uma Psicologia comprometida com uma sociedade mais democrática e igualitária. Ela relembra que quando assumiu pela primeira vez em 1997 a gestão do Conselho Federal de Psicologia (CFP), uma das primeiras ações desse coletivo foi criar a Comissão Nacional de Direitos Humanos, que começou a atuar em agosto daquele ano.

No ano seguinte a comissão se tornou regular, com isso instituindo que todos os Conselhos Regionais de Psicologia deveriam ter obrigatoriamente Comissões de Direitos Humanos em âmbito estadual. “Percebemos que fortalecer a luta por direitos humanos era uma estratégia que reconhecia a relação entre a Psicologia e o Estado. Colocamos então em pauta a relação entre direitos humanos, ação do Estado e sofrimento humano, bem como seus desdobramentos na dimensão subjetiva”, afirma Elisa, acrescentando que a Psicologia comprometida com a dimensão relativa da experiência subjetiva do sofrimento humano tem legitimidade para apontar o modo como o Estado por meio de suas ações garante ou viola direitos humanos e os efeitos desse processo.

Atentos à necessidade de vigilância em relação aos direitos que cabe ao Estado assegurar, o CFP passou a realizar desde 1998 seminários nacionais de Direitos Humanos, além de inspeções nacionais e campanhas que permitiram lançar luz aos efeitos das ações de violações de direitos humanos na subjetividade humana, contribuindo assim para combater essas formas de violência por meio da Psicologia. Entre os temas abordados desde então estiveram o preconceito racial, os manicômios judiciários, as diversas formas de violações dos direitos de crianças e adolescentes, as violências que se originam em nome da proteção e do cuidado, dentre outros.

Em todos esses anos foram feitas inspeções pelo Sistema Conselhos de Psicologia para jogar luz sobre situações em que se operavam violações de direitos humanos, muitas vezes dentro de instituições geridas pelo Estado. Elas resultaram em relatórios – um exercício de transparência – que podem tanto fomentar denúncias aos órgãos competentes, subsidiando processos de apuração e superação de violações, como estimular o aprimoramento das políticas públicas na medida em que apontam falhas e recomendam alternativas. A primeira inspeção foi realizada em 2004 em hospitais psiquiátricos. Em 2006 houve a segunda inspeção, em unidades de internação de adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas. Em 2007 foi a vez de instituições de longa permanência para idosos e pouco depois, em entidades destinadas ao tratamento de usuários de álcool e outras drogas. Uma nova inspeção deverá ser realizada também dentro do âmbito da Campanha contra a violência de Estado.

A colonização, a ditadura e os tempos atuais

Para o conselheiro Aristeu Bertelli da Silva, a sociedade brasileira historicamente se formou por meio do extermínio de populações originárias e se organizou a partir da mão de obra escravizada. Essa lógica se explicita novamente no período de ditadura militar, cujo os efeitos permanecem em nossa sociedade. “Podemos achar que a ditadura acabou, mas basta conversar com os familiares de quem morreu ou foi torturado na época para perceber que não é assim. Os mesmos expedientes usados naquela época são usados hoje em atos violência de estado: o cala boca, a tortura, o sumir com corpos”, ressalta ele.

Discutir a violência de Estado e o papel da Psicologia também é essencial porque ainda hoje muitas vezes o braço da Psicologia é o braço usado para justificar esse tipo de extermínio, conforme afirma Carla Biancha Angelucci, secretária tesoureira da União Latino-Americana de Entidades de Psicologia (Ulapsi). “Nós psicólogas/ os fomos e somos acionadas/os muitas vezes a fim de legitimarmos o extermínio de determinada cultura. Por isso não é aceitável sentar-se em um lugar isolado e agir justificando ações criminosas”, diz ela, para quem uma das formas da violência de Estado operar é não só a de subjugar os povos, mas também de exterminá-los. “Na América Latina vivemos uma condição criada há centenas de anos quando da chegada de um conjunto de pessoas que estabeleceram um modo de governar a partir da “verdade” e, com isso, subjugando os povos originários. Ao viajar por essa região vamos percebendo o empobrecimento da América Latina a partir do extermínio de várias das populações”, afirma Carla.

Para Carlos Gilberto Pereira, representante do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, da Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a violência do Estado não é uma violência qualquer: é uma violência de classe que visa dominar, domesticar, desconstruir os sonhos e esperanças. “A exclusão é parte integrante do extermínio. Moro na periferia e sempre trabalhei e morei na periferia e posso falar de como a violência acontece lá. Temos uma visão de que a principal violência é da polícia, mas temos também a violência da política”, argumenta Carlos. A violência política, segundo ele, trabalha no sentido de apagar as pessoas e principalmente as entidades de defesa dos direitos humanos. Importante notar, conforme analisa Carlos, que embora algumas classes sejam mais afetadas que outras pela violência de Estado, não é possível acreditar que algumas estão mais a salvo que outras. “Ou remamos todos na mesma direção ou vamos pifar todos. Hoje estamos enfrentando um inimigo diferente da época da ditadura. Naquela época falávamos em tortura e desaparecimento de pessoas, mas hoje vemos em escala muito maior o extermínio”, diz ele.

As práticas de exclusão e extermínio são reforçadas pela impunidade, pela conivência e pelo desinteresse do poder público e da sociedade, de acordo com a psicóloga e psicanalista Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes, doutora em Ciências Sociais pela PUC/ SP e autora do livro “Tortura” (Ed. Casa do Psicólogo – 2013). Ela diz que a brutalidade do Estado deve levar a refletir sobre o fato de que há segmentos da sociedade que disseminaram a ideia de que determinadas vidas podem ser exterminadas e não merecem luto.

Para a chilena Andrea Hain, psicóloga social comunitária que desenvolve pesquisas em defesa dos direitos de grupos sociais e culturais, a sociedade em geral consegue defender melhor direitos humanos individuais do que direitos humanos coletivos. “Podemos com mais facilidade reclamar os direitos de uma pessoa presa, que tenha nome e sobrenome, do que reclamar direitos que dizem respeito a uma coletividade”, diz ela. Ela relata que no Chile, assim como em vários países, vive-se também uma situação de conflitos entre diferentes naturezas de direitos. “Temos no Chile muitos conflitos com grandes empresas como mineradoras e termoelétricas e aí vemos que os direitos econômicos brigam com os direitos humanos. Um trabalho básico da Psicologia deve ser o de colocar em evidência onde estão os problemas e traduzir as necessidades coletivas”, afirma ela.

Representante da Campanha Reaja ou Será Morta, Reaja ou Será Morto, a médica Andréia Beatriz Silva dos Santos destaca que a violência de Estado passa ainda pela exclusão da participação política. “Genocídio também diz respeito à prática que exclui o povo negro do processo decisório do país. Genocídio é também uma negação do ser”, afirma ela. Andréia relembra que a própria criação da Polícia Militar em 1825 na Bahia teve como motivação o combate à resistência negra ao extermínio. “A Polícia Militar foi criada para combater o famoso Quilombo do Urubu, que era liderado por uma mulher, Zeferina”, diz ela.

Por todos esses relatos e argumentos percebe-se que aumentar os esforços de apreensão dos efeitos psicoló- gicos produzidos pela violência de Estado é fundamental. Por esse processo poderá a Psicologia contribuir no acolhimento e, portanto, nas possibilidades do enfrentamento coletivo frente à barbárie das relações calcadas no consumo. Trazer à tona a discussão do enfrentamento da violência de Estado e torná-la objeto de debate na formação e aprimoramento de profissionais da Psicologia poderá redundar em grandes mudanças no exercício profissional e na construção de políticas públicas.

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