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Da vergonha à luta: militância transforma mães de internos da antiga Febem

“Espaço da dissolução dos laços familiares”, atual Fundação Casa reflete erros do Estado e omissão da sociedade. Luta é por políticas de ressocialização, no lugar do castigo e da punição
São Paulo – A vida de mães cujos filhos adolescentes são privados da liberdade e internados em instituições de ressocialização como a Fundação Casa – antiga Febem – são transformadas pela militância em defesa da infância e da juventude. Apesar de enfrentarem momentos de “maternidade adversa”, mulheres militantes ressignificam seu sofrimento e se “armam com conhecimentos sobre direitos” para transformar uma experiência de vergonha e culpa em luta por seus filhos e os de outras mães, analisa a pesquisadora Marcela Boni Evangelista, do Núcleo de História Oral da Universidade de São Paulo (USP).
A historiadora ouviu mães de internos da antiga Febem, de 2006 a 2011, para sua dissertação de mestrado, e encontrou profundas diferenças entre mães militantes e não militantes. Mães que têm filhos em conflito com a lei e passam a integrar entidades de apoio e defesa a internos em instituições destinadas à ressocialização de crianças e adolescentes infratores são críticas à atuação do Estado. Elas compreendem, na visão da pesquisadora, que o Estado falhou e transformam trauma e culpa em ativismo.
“As mães militantes tinham um discurso muito mais de responsabilizar o Estado pelas condições precárias das unidades, pelos filhos terem muitos direitos violados durante as internações e também pelo envolvimento deles com drogas”, apontou Marcela. “A escola onde era para meu filho estudar era onde ele comprava droga. A culpa é minha? Não’. ‘ Se eu tivesse condições de não trabalhar…’ e essa discussão vai adiante dentro delas”, explicou a historiadora sobre como as mães passam a analisar o problema vivido por suas famílias.
Para essas mães, a antiga Febem era “o retrato do distanciamento”. “Elas tentavam manter o vínculo, mas falavam muito disso como sendo o espaço da dissolução dos laços familiares”, afirmou Marcela. As mães também criticaram violações de direitos humanos na instituição.
Mães não militantes ouvidas pela pesquisadora expressaram “alívio” por ter os filhos presos. “Para se ter uma ideia, uma das mães não militantes disse: ‘quando meu filho ficou na Febem, para mim foi um alívio, porque eu sabia que lá ele não ia ser morto por policiais, nem por traficante.”
Também há muitos casos de abandono dos filhos que cometeram atos infracionais. “As mães sem militância tinham uma trajetória de acompanhamento dos filhos, mas mais distanciada, reduzida aos limites. Mas quantas mães não largavam os filhos depois da internação? Um número considerável de adolescentes sofre com isso. Inclusive a concepção da Febem é não só privar infratores da liberdade, mas de acolher os abandonados”, lembrou.
Além de ouvir mulheres que viviam a “maternidade adversa”, o contrário da maternidade idealizada em “propagandas de fralda”, Marcela também se deparou com questões como “luto materno” e o “mito do amor materno”.
Acompanhe a entrevista com a historiadora na íntegra:
Ao ouvir mães de jovens em conflito com a lei, você considerou a experiência vivida por elas como “maternidade adversa”. Como você descreve esse tipo de maternidade?
Escolhi o termo maternidade adversa para identificar o que essas mães vivenciavam, porque há uma ideia do senso comum de que há uma universalização da ideia de mulher, inclusive da maternidade. É uma ideia de que a maternidade é uma experiência condicionada de todas as mulheres. Aquela que não tem filho ou não quer ter ainda é vista como uma situação desviante da sociedade. Então eu tive de inicialmente desenvolver uma reflexão sobre uma maternidade múltipla. Eu não estava lidando com aquela maternidade idealizada que passa nos comerciais de fralda. Era uma maternidade diferente. Usei o termo adversa como qualificação porque é uma maternidade que não se concretizava como o que é idealizado. E sendo algo que a sociedade coloca como ideal, quando a gente vê em filmes, novelas, é muito comum ver essa história de família feliz. E para o filho a gente imagina o melhor.
Essas mulheres apesar das dificuldades econômicas e sociais, têm as mesmas pretensões que qualquer mãe. Não querem que os filhos se envolvam com roubos, drogas, tráfico. Elas querem ter filhos felizes, bonitos e se deparam com uma maternidade que não é possível ser vivenciada da forma como é pregada socialmente.
Isso causa frustração muito grande. E o sentimento de culpa é algo presente porque a gente percebe em qualquer visita da Febem que o número de mães é infinitamente maior que o número de pais. Isso tem a ver com a dedicação maior da mãe e culpabilização, uma vez que os pais saem um pouco da cena e a mãe entra como aquela que vai segurar a “bucha”. É a que sofre o preconceito de ter de ouvir: ‘esse filho aí não foi bem criado’.
Que diferenças foi possível observar entre mães militantes e não militantes?
A percepção das mães militantes e não militantes sobre a Febem era diferente. Para se ter uma ideia, uma das mães não militantes disse: ‘quando meu filho ficou na Febem, para mim foi um alívio, porque eu sabia que lá ele não ia ser morto por policiais, nem por traficante’.
Já as mães militantes tinham um discurso muito mais de responsabilizar o Estado pelas condições precárias das unidades, pelos filhos terem muitos direitos violados durante as internações e também pelo envolvimento deles com drogas – era esse o principal problema. Elas viam isso como resultado da ausência do Estado. Eram mães que por precisarem trabalhar tinham de deixar os filhos muito novos sozinhos, por não ter equipamentos públicos decentes para atender a essa demanda.
Foi fácil encontrar mães que se dispusessem a falar?
Tive dificuldade em encontrar e entrevistar universos de maternidade que tivessem experiência de filho preso, sem participação em movimentos sociais, sem engajamento. De seis entrevistadas, só duas não tinham participação na Associação de Mães e Amigos de Crianças e Adolescentes em Risco (Amar). Era notável a dificuldade das mães não militantes em falar dessa experiência. A recusa era grande. Quando aceitavam, também havia dificuldade em falar da experiência de ter um filho com envolvimento em ato infracional.
Como as mães militantes lidam com a maternidade adversa?
Ao se tornarem militantes, essas mulheres ressignificam seus discursos. Elas se armam com conhecimentos sobre direitos, sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). E elas transformam essa experiência, que é de vergonha, de culpa, numa experiência de luta.
Elas passam a lutar pelos direitos de seus filhos e passam a reconhecer isso como direitos delas também. E isso faz com que não tenham mais vergonha de falar. Pelo contrário, eu tive a oportunidade de falar com várias mães. As mães militantes querem falar. Encontram as respostas para os questionamentos delas. ‘Por que meu filho se envolveu com delitos? Não é porque eu não cuidei. É porque eu tive de trabalhar e o Estado não cuidou’. ‘A escola onde era para meu filho estudar era onde ele comprava droga. A culpa é minha? Não’. ‘ Se eu tivesse condições de não trabalhar…’ e essa discussão vai adiante dentro delas.
A pesquisa permitiu uma constatação importante: de como o movimento social é responsável por uma mudança de comportamento, de participação política e pública. Essas mães saem do universo doméstico e vão para as ruas. É uma mudança importante desencadeada pelo trauma. Não é uma experiência positiva que desencadeia a militância: é uma experiência traumática e de dor.
Uma coisa que me surpreendeu foi ver que mães que tinham perdido o filho continuavam trabalhando na área de direito de adolescentes, lutando pelo filho dos outros. Isso me surpreendeu porque me mostrou uma força. Acho que deve ser difícil de lidar com a mesma situação que você vivenciou, mas agora vendo outras mulheres e outros filhos.
No decorrer do trabalho, que outros temas surgiram no contato com as mães?
Eu também discuti o mito do amor materno. Embora as mães com as quais eu tive contato tenham sido essas mulheres que vestiram a camisa da maternidade, a gente não pode considerar que existe um comportamento único, independentemente da vivência. No caso da minha pesquisa, o que unia essas mulheres era uma experiência comum dos filhos terem sido em algum momento internos de unidades da Febem e mesmo nesse universo da sociedade, que já é fragmentado, os comportamentos variam. Eu tinha mães militantes e não militantes.
As mães sem militância tinham uma trajetória de acompanhamento dos filhos, mas mais distanciada, reduzida aos limites. Mas quantas mães não largavam os filhos depois da internação? Um número considerável de adolescentes sofre com isso. Inclusive a concepção da Febem é não só privar infratores da liberdade, mas de acolher os abandonados. Então, a maternidade não pode ser vista como algo unilateral e isso coloca em questão esse mito do amor materno, porque essas mães militantes mostram como esse conceito é enraizado na nossa sociedade. Mesmo nessas condições adversas da maternidade, a identidade de mãe foi o que impulsionou uma série de ações para as vidas delas. Tanto que umas coisas legais que eu ouvia nas conversas era: ‘Depois disso, eu vejo que já tinha uma veia militante, já tinha alguma coisa em mim e hoje não largo isso por nada’. As vidas delas também se ressignificaram.
Foi possível perceber que essa ideia de que a mãe incontestavelmente tem de sofrer pelo filho e tudo mais é uma construção social também e de que de tão enraizada foi perceptível até isso em situações de maternidade adversa.
As entrevistas foram muito longas e dolorosas. No decorrer do trabalho, acabei encontrando um subtema – a questão do luto materno – que não imaginei que eu tivesse de lidar. Sabia que ia lidar com experiências de sofrimento, devido às internações, mas dessas seis mulheres, três tiveram filhos mortos em situação de violência. Um foi queimado vivo dentro de uma unidade. Outra entrevistada teve dois dos filhos assassinados aos 17 anos – um por policial, outro em uma briga. Uma outra mãe também teve o filho morto por um policial. Foram situações com as quais depois tive de lidar.
Nenhuma das mães era militante antes de os filhos serem internados na Febem?
Nenhuma.
Você vê explicações para o fato de que algumas mães se tornaram militantes, outras não?
Penso que tem a ver com uma questão histórica de vivência familiar e de oportunidades. A “Amar” surgiu em uma unidade da Febem. Depois ela se ampliou e tem em outros estados. Mas era uma unidade – segundo as próprias mães – que tinha uma direção mais humanizada. Já começa pela oportunidade de ter acesso e auxílio.
E por essas oportunidades da vida de lidar com pessoas ligadas ao movimento de direitos humanos possibilitou formação individual em termos de direitos. E também é da subjetividade de cada um, de identificação com esse tipo de causa, porque várias outras começaram na “Amar” e não continuaram. No caso das mães que se tornaram militantes, inicialmente há a falta de oportunidade até de conhecer os movimentos.
Daí eu ressalto a importância e a necessidade de os meios de comunicação por exemplo divulgarem a existência desses grupos, suas atividades. Porque a mãe não militante que eu entrevistei nunca tinha ouvido falar desse grupo? E é um grupo extremamente atuante durante alguns anos. Hoje menos. Muitas mães vivendo na mesma cidade e não tinham conhecimento da atuação do grupo.
O que a Febem significa para as mães dos internos entrevistadas?
Para as mães militantes, a Febem é o retrato do distanciamento entre elas e os filhos. Não só físico, mas pela falta de estrutura e comprometimento com o trabalho de ressocialização e aproximação com as famílias. É o retrato de um distanciamento que nunca mais permitiria um retorno ao que era antes. Elas tentavam manter o vínculo, mas falavam muito disso como sendo o espaço da dissolução dos laços familiares.
Para outras era um alívio. Além da questão da violência óbvia, porque essas ativistas falam muito das rebeliões e das violações de direitos humanos. Também marcou a questão da responsabilidade do Estado ao não promover aquilo com o que se comprometia inicialmente, que é ser um local de ressocialização e que, de fato, não era. Mas também comentavam de unidades que tinham condições melhores.
Quem eram essas mães cujos filhos tiveram de ser internados para ressocialização na antiga Febem, atual Fundação Casa?
Eram mulheres comuns, a maioria delas trabalhadoras no comércio, domésticas ou funcionárias públicas em ocupações que não exigiam formação acadêmica. Todas mães de mais de um filho. Algumas sofriam com a violência doméstica praticada pelos maridos. Eram mulheres simples, das classes populares, com condições de vida dignas, porém com essa necessidade de trabalho, muitos filhos, às vezes dificuldades econômicas. Mulheres como a maioria das mulheres.
Depois da pesquisa, como você vê a maternidade?
Hoje, eu vejo a maternidade de um jeito bem menos idílico, com muito prazer e felicidade. Sou uma mãe como todas. Acho comerciais de fralda lindos, meus filhos são adoráveis, mas sei que vão passar por uma fase que é a adolescência e nela tudo pode acontecer, como foi com essas mulheres. Eu tento vivenciar isso de um jeito bem emocional, mas com um pé no racional também.

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