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Diversidade e gênero estão fora dos debates das escolas municipais de São Paulo

Vereadores defendem ambiente escolar sem temas plurais, de gênero e de orientação sexual

Na quinta-feira (11) foi publicado no Diário Oficial do Município a decisão da maioria dos vereadores da Câmara Municipal de São Paulo de retirar as palavras “travesti”, “gênero” e “diversidade” do Plano Municipal de Educação (PME). O substitutivo foi votado na quarta-feira (10) na Comissão de Finanças e Orçamento e irá para o plenário onde poderá receber novas alterações.

O texto previa “difundir propostas pedagógicas que incorporem conteúdos sobre sexualidade, diversidade quanto à orientação sexual, relações de gênero e identidade de gênero”, de acordo com a proposta original.

Para a professora Dra. em Psicologia Social, Carla Biancha Angelucci, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, em tempos em que a violência e o preconceito imperam no cotidiano da sociedade, a educação passa a ser um dos caminhos possíveis para desconstruir conceitos e ampliar a dignidade humana e o pluralismo nas escolas.

Em entrevista, ela relata com indignação a decisão de uma maioria parlamentar da Câmara Municipal que impedirá, segundo ela, debates mais aprofundados sobre questões caras à sociedade. Confira a íntegra.

Os votos contrários dos parlamentares representa um prejuízo à educação?

Carla Angelucci: Foi uma perda gigantesca para toda a educação porque a frase que foi retirada dizia respeito aos temas que poderiam ser levados à escola. E não tinha nenhum direcionamento específico para questões da sexualidade. Foi penosa porque falava que diversidade, gênero e a questão das travestis pudessem ser alvo de debates dos jovens. A perda se dá pela incompreensão de que a escola seja um espaço para discutir as várias formas da gente se manifestar como ser humano, não só com relação à sexualidade e ao gênero, mais à diversidade que nos constitui.

A diversidade é também um conceito amplo.

Sim. Por exemplo, eu trabalho com educação de pessoas com deficiência e com transtornos globais no desenvolvimento. Isso faz parte da diversidade humana. E, na medida em que isso não pode ser sequer falado, imagina qual é a garantia dos direitos à educação que essa parcela da população que vive uma condição muito característica terá. O mesmo vai se dar com as pessoas homossexuais, que são alvos de preconceito e discriminação o tempo inteiro, com relação às diferenças étnico-raciais, culturais, linguísticas. Tudo isso deixa de ser compreendido como alvo de debate no ambiente escolar.

Levando-se em consideração o âmbito nacional de decisões, qual a contradição dessa medida para a maior cidade do Brasil?

É muito contraditório porque temos dentro do Ministério da Educação a Secadi [Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão] que cuida dos processos educacionais, escolares, voltados para as populações quilombolas, do campo e para pessoas com deficiência. Ou seja, temos uma organização ministerial que prevê uma secretaria para cuidar das questões da diversidade. E, aqui [na cidade de São Paulo], no nosso Plano Municipal de Educação, sequer reconhecemos que a diversidade seja uma questão? É de um retrocesso enorme.

Você acredita que isso tem relação com um cenário de moralismo desenfreado?

Isso revela um medo dos setores conservadores de jovens que estão nas escolas poderem pensar sobre a condição humana. É um absurdo ver que no Plano Nacional de Educação (PNE) a questão da diversidade foi uma questão bastante debatida, mas no PME isso é retirado. É um desrespeito em relação aos acordos que foram fixados no nível nacional sobre quais são os temas importantes para cuidarmos nos planos municipais.

Mas outras questões saíram do PNE.

Sim, mas como permaneceu o item “diversidade”, podemos inserir nesse grande contexto também a diversidade sexual. Foi uma perda no nível nacional porque saiu a explicitação dessa questão, mas a diversidade deixou o campo aberto para discutirmos, diferente do plano em São Paulo.

Setores querem reverter conquistas do último período?

Sem dúvida isso faz parte de uma grande onda conservadora que estamos assistindo em diferentes níveis da sociedade. Os setores conservadores estão com muito medo dos avanços que tivemos nos últimos 10 anos. As questões não foram todas solucionadas, óbvio, mas estávamos vindo num contínuo de avanços no sentido de reconhecer que inúmeras minorias sociais não têm os seus direitos garantidos. E estávamos vindo numa linha de pensar as políticas setoriais numa perspectiva dos direitos humanos. E agora temos assistido, nos últimos dois anos, o conservadorismo ganhando muito terreno, com um discurso de aterrorizar a população como se fossemos perder os valores ou nos tornarmos pessoas imorais porque reconhecemos a diversidade humana.

Os que votaram pela retirada do texto na capital paulista e setores conservadores reproduzem um discurso nacional de que haveria uma “ideologia de gênero” em oposição ao que entendem como família. Qual sua avaliação?

O discurso conservador está vindo com a máscara da defesa da família, mas na verdade ele vem para destruir as configurações familiares que vivemos hoje. Porque quando pensamos no projeto do Estatuto da Família, por exemplo, ele não reconhece sequer as famílias monoparentais, as homoafetivas e as intergeracionais, que são a avó, a mãe e a criança que vivem num mesmo lar. A gente pode até mesmo afirmar que ele não reconhece a maioria das configurações familiares atuais, porque a maioria das configurações não é composta por um homem, uma mulher e as crianças.

Como você avalia a retirada também da questão de gênero?

Tudo o que discutimos hoje sobre a violência contra a mulher, a necessidade de explicitarmos a vulnerabilidade e o quanto o machismo mata na nossa sociedade, cai por terra com isso. Porque a escola não pode mais discutir questões de gênero, não podemos mais discutir o quanto a mulher está vulnerável nas relações sociais. E a cultura de estupro, de violência física contra a mulher, a violência moral. Nada disso mais fica reconhecido como um debate necessário. Podemos dizer que a gente legitima até mesmo os estupros que acontecem dentro e fora das escolas.

O que caberá aos educadores, então?

Espero que eles se revoltem contra essa deliberação. E, se no espaço onde eles atuam, a questão pode não estar no Plano Municipal de Educação, que esteja na ética profissional. Que como educadores continuem debatendo esses temas. Não podemos compactuar com questões estruturais e com a invisibilidade das minorias sociais. 

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