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Entre o fluxo e o contêiner: um dia na Cracolândia sob a gestão Doria

Reportagem acompanhou ação de limpeza da Praça Princesa Isabel e ouviu usuários que recorrem ao abrigo emergencial da prefeitura

Um homem de cerca de 50 anos de idade aborda uma equipe de saúde da Prefeitura de São Paulo na Praça Princesa Isabel, no centro da capital, onde se fixou a nova Cracolândia. Ele diz que quer se internar. Pergunta se “na clínica” poderá receber tratamento dentário e esboça um sorriso, expondo a ausência de alguns dentes. Ele explica que está sem documentos.

A equipe, formada por um homem e três mulheres, trata o homem com desdém. Ele quer saber se na clínica há psicólogo, psiquiatra. “Claro que tem”, afirma uma agente. Ao perguntar sobre onde seria internado, se em São Paulo ou no interior, ouve como resposta: “Onde tiver vaga”. O potencial paciente insiste, quer ter alguma ideia dos destinos possíveis. “Só Deus sabe”, responde a servidora. “Só Deus sabe? Está certo”. Ele dá as costas e vai embora.

São quase 15h da terça-feira 20. Vai começar mais uma ação de limpeza na praça, a segunda do dia. A nova rotina faz parte de uma estratégia da gestão João Doria (PSDB) e do governo Geraldo Alckmin (PSDB) para impedir que barracas sejam montadas no local, de forma a coibir o tráfico, segundo o discurso oficial. Mesmo após a limpeza da manhã havia ali, no entanto, diversas estruturas erguidas com lona. Os termômetros marcam 17 graus, e a garoa fria reduz a sensação térmica.

Um caminhão do programa Cidade Linda, de “apoio a remoção”, estaciona próximo ao monumento a Duque de Caxias, na praça, onde também se posiciona o efetivo da Guarda Civil Metropolitana (GCM). São cerca de 50 agentes que se preparam para entrar no “fluxo”, abrindo caminho para a equipe de varrição. Espalhados pela praça, os usuários de drogas começam a se movimentar – há mais de 500 naquele momento.

Recolhem tudo que é possível carregar: roupas, cobertores, utensílios, guarda-chuvas. O percurso é curto, e eles deixam esse pedaço de chão para se fixar a poucos metros dali, na mesma praça, no canto mais próximo ao terminal Princesa Isabel.

A GCM começa então a sua incursão. Atrás deles, os garis recolhem o lixo deixado para trás. O caminhão de apoio encosta, e nele são jogados pedaços de madeira, o estrado de uma cama, entulho mais pesado. Na outra metade da praça, a vida segue no fluxo. Idosos, adultos e jovens continuam a consumir álcool e drogas. Um homem aparece com um galão de 20 litros de água nas costas e algumas canecas de plástico. “Água, meus irmãos”, vai gritando. As pessoas o procuram, estão com sede, agradecem. Um casal briga por um cachimbo.

Seis dias antes, na quarta-feira 14, a limpeza terminou com usuários e agentes feridos. Segundo relatos na imprensa, houve truculência por parte da GCM, que também teria recolhido objetos pessoais, e os usuários reagiram com pedras. A Polícia Militar, que mantém até quatro bases comunitárias móveis no local, usou bombas de gás lacrimogêneo e acionou a cavalaria. A prefeitura também usou água na limpeza, deixando a praça na lama.

Não houve tumulto na ação da última terça-feira. Todo o processo de limpeza durou cerca de duas horas. Começou às 14h30, com a GCM se posicionando, e terminou por volta das 16h30, com os usuários novamente espalhados pela praça, carregando os mesmos pertences e retomando o território onde se encontravam inicialmente.

A reportagem se aproxima de três mulheres de outra equipe de saúde da prefeitura e pergunta qual é o objetivo da ação, que parece não ter propósito. “O propósito está muito bem definido”, diz uma servidora. E qual é? “Vencer pelo cansaço”, ela responde. Vencer pelo cansaço para internar? “Não, isso não”, diz outra. Então, para quê?

As agentes ficam em silêncio. A servidora que citou a estratégia do cansaço faz um gesto de costurar a própria boca e a conversa chega ao fim.

Abrigo em contêiner

O objetivo do prefeito João Doria está claro desde a primeira ação de 21 de maio na Cracolândia, quando o fluxo migrou da Alameda Dino Bueno para a Praça Princesa Isabel e a prefeitura pediu à Justiça autorização para internar usuários de drogas à força – o que foi negado. Em uma tentativa de contornar o problema, a gestão Doria inaugurou no dia 8 de junho um abrigo emergencial em contêineres, a cerca de 800 metros da praça.

A estrutura conta com 100 leitos para pernoite, banheiros e chuveiros. No local também é oferecido café da manhã, almoço e jantar. A estratégia da prefeitura é atrair os usuários para convencê-los da necessidade da internação.

“Eles perguntam se a gente quer tratamento. Eu não quero”, diz o catador de latas Joel Marins Leme Filho, de 59 anos, que mora na rua há cinco anos, quando começou a usar crack.

Ele também bebe muito, mas está sem álcool há uma semana, “por ordens médicas”. Crack ele consome todos os dias, no fluxo. Ele diz que saiu da prisão sete anos atrás, depois de pegar 29 anos “só por roubos”. “Mas não puxei esses anos de uma tacada só, não”, explica.

Leme Filho foi até o local para almoçar e conta ter dormido apenas duas noites na unidade. “Eu gosto de ficar na rua. Aqui falta organização [nos contêineres]. Tem que ter regra e disciplina, porque o pessoal da rua tem a mente perturbada, são doentes. É difícil.”

Há também quem elogie o equipamento da prefeitura. Para Rogério Soares, de 38 anos, é “melhor do que dormir na rua”. Ele conta que é formado em veterinária pela Universidade de São Paulo (USP), mas diz ter começado a usar crack oito anos atrás, após uma “decepção familiar”. Está há cinco meses sem consumir a substância, mas vê no álcool um poder destrutivo equivalente. “Eu bebo para caramba. O álcool é droga lícita, mas é droga.”

Soares diz que o abrigo “é bom”, mas parece desconfiado quanto ao futuro da estrutura. “É emergencial, por causa do frio. Acabando o frio, acaba isso aqui também. A gente sabe”, afirma.

Com o pé machucado e andando com dificuldade, ele critica a mudança da estratégia da prefeitura, que desde a semana passada exige que os interessados no pernoite retirem uma ficha de encaminhamento a cerca de um quilômetro de distância dali, na rua Helvétia, em uma tenda que antes pertencia ao De Braços Abertos, programa da gestão Fernando Haddad (PT) para a Cracolândia descontinuado por Doria.

Janaína Flávia Nascimento dos Santos, de 39 anos, e Jéssica Pereira da Silva, de 31 anos, também aprovam a estrutura. Elas, que tinham se conhecido na véspera, parecem amigas de longa data. Elogiam a comida, o atendimento e a organização do local.

Jéssica diz que faz “programa na noite” e consome crack há 12 anos. Ela está há um ano e meio na rua e conta que já ficou seis meses internada. “Internar não adianta nada. Só serve para você engordar e ficar bonita. Depois volta tudo.”

A história de Janaína na rua é mais recente: são seis meses sem ter um teto. “Estava usando drogas todos os dias. Recebia salário e não pagava as contas”, diz. Ela conta que trabalhava em serviço de limpeza e que não usa crack, mas consome cocaína e maconha há 13 anos. Natural de Senhor do Bonfim, na Bahia, Janaína agora quer voltar para casa.

Ana Maria Rosa, de 52 anos, trabalha cuidando de carros no centro. Ela usa drogas há 32 anos, “crack, cocaína e maconha”. Conta que ficou quatro anos presa, sem julgamento, por matar um homem que tentou estuprá-la, e hoje faz tratamento contra a dependência no Caps (Centro de Atenção Psicossocial). Estava sem usar crack havia alguns dias, mas teve uma recaída. “Hoje eu fui lá na praça.”

Para Ana Maria, a vida piorou recentemente. Ela conta que era beneficiária do De Braços Abertos, onde trabalhava na frente de varrição, e reclama de “promessas não cumpridas” do atual prefeito. “O Doria fechou o De Braços Abertos e disse que ia dar emprego, que ia dar curso. Cadê? Até agora não teve nada disso. Ele quer que a gente passe a roubar?”

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