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Excesso de remédios e terapias na infância preocupa especialistas

Psicólogo aponta que apelo a ‘comprimidinho’ é tentativa de fugir da busca pela raiz dos problemas e da garantia de uma relação saudável entre pais e filhos

São Paulo – A medicalização da educação e da sociedade, processo que tem transformado em distúrbios passíveis de tratamento com terapias e medicamentos questões como emoções, sentimentos e comportamentos não aceitos socialmente, é o tema de palestra apresentada esta semana na Câmara Municipal de São Paulo. O evento, organizado pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade para marcar o dia municipal dedicado a reflexões e debates sobre o tema, conta ainda com o lançamento das Recomendações de Práticas não Medicalizantes para Profissionais e Serviços de Educação e Saúde. Apesar do título, o guia elaborado por uma equipe multidisciplinar é útil também para orientar pais e demais pessoas interessadas no assunto. 

Distúrbios como o transtorno de déficit de atenção com hiperatividade (TDAH) têm sido cada vez mais diagnosticados no Brasil. Ao mesmo tempo, cresceu a prescrição de medicamentos como o metilfenidato, cujo nome comercial é Ritalina, muito usado nesses casos. O que preocupa diversos profissionais da saúde e da educação é que ainda não há estudos suficientes sobre os problemas causados pelo uso prolongado da droga. E também que a falta de diálogo entre crianças, adolescentes, seus familiares e educadores esteja sendo substituído justamente por medicamentos como esse.

O  psicólogo Ricardo Taveiros Brasil, do coletivo interinstitucional Queixa Escolar e integrante do grupo de trabalho Educação e Saúde do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade, um dos responsáveis pela elaboração do guia, diz que um exemplo muito comum do fenômeno é a dificuldade que muitos pais e professores têm hoje em dia para educar as crianças. Em vez de irem à raiz dos problemas e suas explicações, passam logo a dizer que elas são portadoras de distúrbios de comportamento, de atenção, de aprendizado, de leitura e escrita “como se houvesse na realidade um distúrbio específico, neurológico, que comprometesse somente o aprendizado”, aponta. “No entanto, é preciso deixar bem claro que não estamos falando que isso acontece na Medicina como um todo e nem que somos contrários a toda forma de prescrição de medicamentos”, salienta. Os questionamentos contra a medicalização surgiram nos anos 1970 e 1980, com pesquisadores de diversas áreas, como filosofia, sociologia e até da própria medicina. 

Outro exemplo é a confusão que tem sido feita entre tristeza, luto e depressão – que aliás vem sendo alardeada por setores da saúde mental e pela mídia como o ‘mal do século’. Conforme Ricardo, estão dando prazo para o sofrimento. Assim, o processo de luto de uma pessoa que perdeu um ente querido ou algo de muita importância é normal se durar 14 dias. A partir daí, se não melhorar, é depressão e é preciso entrar com medicação. ”Isso nos assusta. Do ponto de vista da Psicologia, o processo de luto é muito singular. Como estabelecer prazos para a elaboração do luto por uma pessoa querida que perdi?”, questiona. Ele menciona o livro O tempo e o cão – a atualidade das depressões, da psicanalista Maria Rita Kehl, ganhador do prêmio Jabuti 2010 na categoria Educação, Psicologia e Psicanálise, no qual a autora pensa a depressão como sintoma social, de uma sociedade que exige felicidade, alegria em tempo integral, artificial, com as pessoas divulgando em redes sociais uma vida feliz o tempo inteiro. 

Segundo o psicólogo, por trás do movimento da medicalização estão forças da sociedade e sobretudo um movimento da indústria farmacêutica voltado para isso. Fato, conforme Ricardo, mostrado no filme O Jardineiro Fiel, dirigido por Fernando Meirelles, que denuncia manobras da indústria de medicamentos para aprovar pesquisas e lança-los no mercado conforme seus próprios interesses comerciais. “Só que com o avanço das pesquisas em todas as áreas, a medicalização mostra-se cada vez mais polêmica e questionada inclusive no próprio campo da medicina”, diz.

O profissional, que atende crianças e adolescentes com dificuldades específicas na escola, adverte pais e educadores para que, antes de rotular quaisquer dificuldades de aprendizagem com este ou aquele distúrbio, devem avaliar e refletir o contexto como um todo. “O que está acontecendo dentro da escola e no sistema educacional que está dificultando que a criança aprenda aquilo que tem que aprender?”, questiona. Para ele, é preciso também impor limites às crianças, ensinar, por exemplo, que não se pode fazer na casa da vovó tudo o que se quer fazer. “A criança precisa de limites. Afinal, que mundo é esse em que não sobra tempo para os pais estarem por mais tempo com os seus filhos? Que escola é essa que tem mais de 40 alunos por sala de aula, impedindo o professor de acompanhar o aluno mais de perto, de ter um contato mais próximo?”

Esse contexto desfavorável à educação e ao desenvolvimento psicológico de uma criança é, na análise de Ricardo, favorável aos processos de medicalização. “A partir do momento em que a criança toma um comprimidinho, fica parada, contida quimicamente, e não atrapalha mais. Só que esse ‘efeito terapêutico’, na verdade, é sinal da toxicidade do remédio. O melhor é que pais e professores reflitam mais sobre o que pode estar acontecendo, dialoguem e investiguem esse contexto, que é complexo, antes de encaminhar a criança para um profissional. Isso pode parecer mais complicado do que dar um remédio – aliás, tomar remédio é mais fácil; toma-se remédio para tudo. Em vez de fazer exercício e melhorar a alimentação, as pessoas tomam remédio para emagrecer”.

Para ele, do ponto de vista psicológico, essas drogas usadas exercem efeitos complexos e preocupantes, como ‘calar o sujeito’ – quando a criança que está ‘incomodando demais’ está, na verdade, querendo chamar a atenção, comunicar algo de muito sério, como medos, preocupações, desejos. “Nós precisamos primeiro ouvi-las, dar atenção e não calar a angústia, o sofrimento, com um comprimidinho”.

Do ponto de vista orgânico, segundo ele, há relatos de que o uso contínuo desses medicamentos tornam as crianças cada vez menos sensíveis para uma série de coisas. Exemplo é um bombom de chocolate, que não vai ter o mesmo efeito de prazer. “Então, se a gente pensar em um adolescente que fuma maconha e usa esses medicamentos, sua propensão a outras drogas é muito maior porque ele vai buscar outras formas de obter satisfação, prazer”, explica. 

Para Ricardo, a questão é grave, colocando em risco a saúde das crianças e transferindo para elas a responsabilidade de um sistema de educação cheio de problemas. “O Estatuto da Criança e do Adolescente assegura que a criança tem direito à vida, à educação e saúde de qualidade. E esse direito pressupõe o direito de não tomar uma droga que pode levar a consequências graves. É por isso que temos que lutar.” 

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