Organização “Católicas pelo Direito de Decidir” existe no Brasil desde 1993 e reivindica a legalização do aborto
Desde o início da década de 1990, grupos de mulheres organizados em diferentes países, incluindo o Brasil, têm mostrado que é possível unir a fé religiosa com a luta pelos direitos das mulheres. São as “Católicas pelo Direito de Decidir” (CDD). Em abril, o CDD dará início ao projeto “Fé_ministas”, que reúne mulheres jovens para discutir a teologia feminista e o patriarcado eclesial.
“A partir do momento que começamos a reconhecer a reprodução das violências no espaço de comunidade de fé, a gente começa a não querer mais participar, porque essas violências começam a fazer mal psicologicamente”, afirma Tabata Tesser.
Aos 23 anos, ela é ativista da organização. Começou a se engajar na militância quando compunha a Pastoral da Juventude na Paróquia São Roque, em Guarulhos, cidade da região metropolitana de São Paulo.
“O Católicas faz um movimento importante de reunir essas mulheres que não suportam mais estar nesse espaço, mas que não vão deixar de disputá-los”, completa.
Hoje, as mais jovens dividem o ativismo na organização ao lado das mulheres mais experientes. Muitas delas fundaram o movimento no Brasil no ano de 1993. É o caso da socióloga Maria José Rosado, 73.
“A organização teve esse nome de ‘católicas’, mas a gente entendia que não era um grupo confessional. Era um grupo que tinha na sua pauta a defesa do fato de que as mulheres não precisariam deixar a sua fé cristã para serem feministas, autônomas, livres e defenderem seus direitos”, relembra.
Aborto, Estado e Igreja
Uma das principais demandas do movimento, como mostra o próprio nome, é o exercício pleno dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Entre eles, está a reivindicação da legalização do aborto.
O fato de as mulheres serem religiosas, segundo argumenta Tesser, não as impede de interromper a gravidez. Levantamentos sobre o tema sustentam essa afirmação. No Brasil, de acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto, publicada em 2016, 56% das mulheres que abortam professam a religião católica.
“Ilegal para a gente é, através do discurso religioso, querer mascarar que o debate sobre o aborto é sobre a vida. Para nós, o debate é anterior a esse. É sobre planejamento familiar, cultura do estupro”, explica.
A ativista defende que o próprio evangelho mostra como as mulheres devem ter o direito de decidir se querem ou não continuar com a gravidez. “Maria foi consultada para ser mãe de Deus, e ela disse sim. Se ela disse sim, ela teve o direito de decidir.”
O CDD também reivindica o combate ao que chamam de “machismo eclesial”. Para Maria José Rosado, a composição masculina do clero católico, formado por padres, bispos, cardeais e papa, fomenta a manutenção do poder masculino, que as mulheres buscam romper.
“Mulheres reivindicam um outro lugar dentro da Igreja, adequado àquilo que elas são e fazem para a religião. [Elas] são fiéis, trabalham para Igreja, dão um trabalho voluntário enorme e não tem reconhecimento formal, não tem um lugar adequado”, argumenta a socióloga.
Outra reivindicação é a garantia do Estado laico, outra das principais pautas do movimento feminista brasileiro.
O presidente Jair Bolsonaro (PSL) já se manifestou diversas vezes contrário ao aborto enquanto atuava como deputado federal. Em entrevista ao canal católico RedeVida, dias após de eleito para a Presidência, ele também fez declarações no mesmo sentido.
“Caso fosse presidente, como sou agora, se porventura Câmara e Senado aprovarem uma ampliação do aborto, nós aqui vetaremos”, afirmou o mandatário brasileiro.
Segundo Tabata Tesser, a eleição de Bolsonaro com o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’’ reflete como o debate religioso é importante na disputa política do país.
“Esse discurso faz com que as leis, majoritariamente formuladas pelos homens, dominem sobre os corpos das mulheres usando a legitimidade do recurso religioso”, critica.
Experiência latino-americana
As Católicas pelo Direito de Decidir já acumulam mais de 25 anos de organização na América Latina. Além do Brasil, a organização está presente em países como Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, El Salvador, México, Nicarágua, Paraguai, Peru e Espanha.
Na Argentina, assim como no Brasil, a organização nasce em 1993 na região de Córdoba, segunda cidade mais populosa do país e localizada ao norte, onde predomina a religião católica. Nos últimos anos, elas tiveram grande participação na Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto Legal, Seguro e Gratuito.
Em conversa com o Brasil de Fato, a advogada Silvia Juliá, diretora executiva do CDD na Argentina, explica que o surgimento da organização nos países, em épocas semelhantes, tem relação com o contexto regional.
Ela destaca a importância da Teologia da Libertação, corrente cristã surgida na América Latina. “Desde os anos 1960, uma forte igreja progressista acompanha as lutas e os movimentos sociais. Apesar de golpeada pela ditadura, ela resistiu.”
Outro fator igualmente importante é a reorganização do movimento feminista com o regresso de mulheres que estavam no exílio em função das ditaduras civis-militares que viveram os países e que voltam com as bandeiras da luta de classes e do feminismo.
As semelhanças não param por aí. Assim como o Brasil está sob governo de Bolsonaro, a Argentina enfrenta uma grave crise sob o governo de Maurício Macri (Cambiemos), também defensor de um modelo neoliberal. As medidas econômicas do mandatário argentino têm sido fortemente rejeitadas pelos movimentos populares e sociais do país.
“Sabemos que as mulheres são as primeiras que sofrem as políticas neoliberais”, afirma Juliá. “A política econômica e social deste governo favorece uma porcentagem muito pequena da população, está destruindo o aparato produtivo e gerando uma grande onda de desemprego”, completa.
De acordo com levantamento do Instituto Nacional de Estatísticas e Censo (Indec), a taxa de desemprego na Argentina subiu de 7,2% para 9,1% em 2018. O país tem eleições presidenciais marcadas para outubro deste ano.
A socióloga Maria José Rosado, destacando o crescimento que o movimento teve ao longo dos anos, defende que não é possível dimensionar a presença das mulheres católicas e feministas na sociedade brasileira. “Todas aquelas mulheres católicas que as pesquisas mostram, que são a maioria das que abortam, e que usam métodos anticonceptivos são católicas pelo direito de decidir.”