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Genocídio de jovens negros ’embranquece’ unidades da Fundação Casa

A ausência de políticas sociais do estado, acentuada pela forte presença repressiva da Polícia Militar, empurra crianças e adolescentes para o crime. Assista a documentário sobre o tema

São Paulo – O aumento da violência contra adolescentes e jovens negros e pobres nas periferias das grandes cidades brasileiras, por meio de chacinas praticadas pelo tráfico de drogas, milícias ou mesmo integrantes da Polícia, está “embranquecendo” a clientela atendida pelas unidades de medidas socioeducativas.

Dados do Atlas da Violência 2017, divulgado no começo de junho pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, mostram aumento de 18,2% na taxa de homicídios de negros com idades entre 15 e 29 anos, e redução de 12,2% entre os não negros.

Esse genocídio na periferia aparece, de maneira sutil, no documentário Meninos de Palavra, exibido na noite de do dia 18 em São Paulo (assista aqui e aqui), durante debate com arte-educadores e especialistas que marcou o Dia Internacional Nelson Mandela – pela liberdade, justiça e democracia, instituído pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em comemoração à data de nascimento do líder sul-africano. Mandela, que dedicou sua vida ao combate ao racismo e ao regime de segregação racial, passou 27 anos preso, condenado por terrorismo.

“Embora haja esse processo de ‘branqueamento’ na Fundação Casa, 56% dos internos ainda se compõem por negros e pardos, refletindo todas as marcas anteriores ao seu nascimento, dos 300 anos de escravidão, da desigualdade no acesso a bens materiais e simbólicos da nossa sociedade, histórias de vidas marcadas pela negligência, abandono e uma série de situações que levam esse menino ao desamparo que o crime preencheria”, disse a psicóloga Heloisa de Souza Dantas, integrante do Núcleo de Política de Drogas do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP e consultora em programas de formação voltados aos serviços de medidas socioeducativas e em abrigos.

Conforme destacou, a ausência do estado nas periferias se dá pela insuficiência das políticas públicas, na falta de escolas e de lazer. “Por outro lado há o excesso de estado na vida de jovens da periferia por meio da polícia, que constitui seu braço armado”, disse. “É perverso que muitos adolescentes estejam aprendendo a ler e a escrever só quando chegam à Fundação Casa. Eles teriam de ter tido acesso ao letramento no meio aberto. Nenhum menino pode perder metade de sua adolescência privado de liberdade.”

Segundo ela, a violência e os maus-tratos na vida desses adolescentes, que aumenta nas delegacias, tem continuidade em unidades de medidas socioeducativas em todos os estados, onde já “chegam quebrados” e muitas vezes se veem diante de situações de barbárie, como em rebeliões organizadas não para a fuga, mas para brigas que muitas vezes acabam em mortes.

“A Fundação Casa e outras instituições, o cárcere em geral, não são educativas mas punitivas, que vão penalizar o indivíduo que vai pagar por algo e que não tem leitura das várias marcas que carregam. O cárcere produz marcas profundas, estigmatiza, traumatiza. É a violência do estado em equipamentos que reproduzem a lógica punitiva e excludente das escolas e abrigos e outras políticas insuficientes”.

Arte-educação

Arte-educador que ministra oficinas de teatro no âmbito do Projeto Educação com Arte na Fundação Casa, realizadas pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Mestre Caçapava disse suas atividades são muito mais do que dar aulas. “É sensibilizar aqueles meninos e também outras pessoas aqui fora, para aquelas que tenho a oportunidade de dizer, porque não tenho medo de ir lá fazer as oficinas, de que, junto com eles, estamos transformando o caos em arte”, disse.

Mestre Caçapava lamentou não poder usar as mesmas ferramentas de que dispõe nas escolas públicas e instituições nas periferias, onde estão muitos adolescentes que ele vai conhecer mais tarde, no interior das unidades de cumprimento de medidas socioeducativas onde promove as oficinas. “É maravilhoso colocar a arte a serviço da educação desses meninos, mas o ideal seria poder trabalhar com eles do lado de cá, aqui fora.”

O jornalista Bruno Paes Manso, da Ponte Jornalismo, disse que o desafio é fazer frente ao sedutor mercado de drogas, que oferece a ilusão de aventuras, mulheres, poder, dinheiro e independência – símbolos masculinos – em oposição ao mundo que vivem de privação, pobreza e humilhação. Por isso eles são maioria (95%) dentro das unidades. “É com essa alternativa, com esse mundo de argumentos sedutores que estamos competindo”, disse.

Bruno defende a desconstrução desse modelo, fortalecendo os argumentos positivos para a vida fora do crime, mesmo que seja uma vida mais modesta, com ganhos menores que no mundo do crime. “Temos de oferecer melhores condições para que faça sentido a ideia de que é melhor ter das pessoas o respeito, e não o medo; ter a admiração da família, em vez de trazer preocupação, de despertar o amor de seus familiares, de manter as amizades em vez de ter de se separar delas ao ser encarcerado. E que o crime é só interesse e ganância”, afirmou.

O jornalista defendeu ainda a abertura de portas para essas trajetórias alternativas ao encarceramento em massa, que tem causado mais raiva, mais ódio e mais indignação, o que justificaria o ingresso nessa “ideologia do crime”.

Ele afirmou que o “remédio” usado atualmente pelo estado, com flagrantes nas periferias, enchendo cada vez mais os presídios, tem como efeito colateral o fortalecimento das gangues prisionais. “Lidar com esses desafios significa dialogar com as pessoas, saber como essa meninada pensa e ‘vê a real’, em um diálogo papo reto, para que a gente consiga convencê-los que o crime não é o caminho”.

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