Brasília – Depois de ter passado por várias saias justas nos últimos dias, como o recuo no projeto que objetivava aumentar a duração dos cursos de medicina em mais dois anos e na anulação da portaria que autoriza a realização de cirurgias para mudança de sexo na rede pública de saúde, o governo deu, finalmente, na tarde desta quinta-feira (1º), grande passo em relação aos cuidados com mulheres vítimas de estupro no país. Tratou-se do anúncio da sanção, sem vetos, pela presidenta Dilma Rousseff, ao Projeto de Lei (PL) 3, de 2013, referente a cuidados com mulheres vítimas violência sexual – tema que vinha, pelo seu teor, sendo criticado por entidades evangélicas e da Igreja Católica.
Na prática, a matéria, proposta inicialmente em 1999 pela deputada Iara Bernardi (PT-SP), não apenas determina a todos os hospitais vinculados ao Sistema Único de Saúde (SUS) que ofereçam atendimento imediato às vítimas de violência sexual, como também autoriza o uso da pílula do dia seguinte – que já era liberada mediante norma do Ministério da Saúde, mas não tinha força de lei – por meio do que foi chamado, ao longo da tramitação do PL no Congresso, como “profilaxia da gravidez”. Além disso, os hospitais passam a ser obrigados a fornecer informações sobre os direitos legais e todos os serviços sanitários disponíveis para as pessoas que são vítimas de estupro.
Para a ministra Eleonora Menicucci, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, a lei sancionada aborda toda o pensamento que tem sido defendido sobre o tema pelo governo. “Amenizará, definitivamente, o sofrimento de crianças, mulheres e pessoas portadoras de deficiências e de meninas que sofrem o estupro e a violência sexual”, destacou, durante entrevista coletiva no Palácio do Planalto. Menicucci chamou a atenção para as estatísticas, segundo as quais, no mundo, uma em cada cinco mulheres se tornará uma vítima de estupro ou de tentativa de estupro no decorrer da vida.
“O Brasil apresenta um dos piores índices de violência contra mulheres e meninas. É alarmante o número de crianças e adolescentes abusadas e exploradas sexualmente. Estima-se que, a cada 12 segundos, uma mulher é estuprada no país. São dados que demonstram, portanto, que combater a violência sexual no país é uma questão de saúde pública”, salientou a ministra.
O projeto determina aos hospitais e a toda a rede do SUS que ofereçam, a partir da vigência da lei, “tratamento imediato das lesões físicas decorrentes da violência sexual; amparo médico, psicológico e social às vítimas; facilitação do registro de ocorrência e encaminhamento ao órgão de medicina legal; tratamento e prevenção das doenças sexualmente transmissíveis; e coleta de material do exame de HIV”. Estabelece, ainda, que caberá ao médico responsável pelo atendimento a cada uma das vítimas preservar material para posterior exame legal, e, ao órgão de medicina legal, o exame de DNA para a identificação do agressor.
“Profilaxia” e gravidez
Como, de acordo com o Código Penal, o aborto praticado no caso de gravidez resultante de estupro não é punido, a nova lei abre uma possibilidade para que o assunto volte a ser discutido no Judiciário e no Legislativo brasileiros com outra perspectiva daqui por diante. Além disso, representa um avanço no tocante às políticas para mulheres. Mas passou a ser visto, pelos que se manifestaram contrários ao PL, como uma forma de abrir brechas para o aborto, sobretudo pelo termo “profilaxia da gravidez” utilizado em seu teor.
Recentemente, dois ofícios – um pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e outro pelo presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP) – foram encaminhados à presidenta Dilma Rousseff pedindo o veto ao projeto ou, ao menos, a alguns dos principais artigos. Além disso, entidades religiosas tocaram no assunto durante encontro recente com a presidenta no Palácio do Planalto.
O Executivo não escondeu, nos últimos dias, que existiam dúvidas sobre a necessidade ou não de vetar trechos da lei, mas a presidenta resolveu acatar entendimento de técnicos do Ministério da Saúde e da Secretaria de Políticas para as Mulheres de que a pílula do dia seguinte, dentro dos protocolos do Ministério da Saúde, não é considerada abortiva. Sem falar que, conforme levantamentos científicos, a pílula tem evitado transtornos para muitas mulheres que, quando engravidam em situações de violência sexual, recorrem a práticas ilegais de aborto e muitas vezes colocam suas vidas em risco.
Outro argumento defendido foi de que a matéria acabou aprovada por unanimidade no Congresso, o que poderia provocar um novo atrito do governo com a base aliada. Ficou decidido, então, que o Executivo encaminhará ao Legislativo, na próxima semana, um projeto esclarecendo o termo “profilaxia da gravidez” – mostrando, com todas as letras, que não significa a realização de aborto, como dizem segmentos religiosos – definindo melhor o conceito de violência sexual e acentuando o uso e a administração da pílula do dia seguinte com eficiência para gravidez resultante de estupro.
De acordo com o ministro Alexandre Padilha, o encaminhamento do projeto ao Congresso é importante para deixar o texto com o formato exato ao que é recomendado, hoje, pelo Ministério da Saúde. “A oferta de medicação no tempo adequado pode evitar gravidez de vítimas de estupro. Esse projeto transforma em lei aquilo que já é uma política pública estabelecida mediante portaria do ministério e que garante tratamento humanizado a essas pessoas”, assegurou o ministro.
Informações divulgadas pelo governo mostram que, conforme o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em cinco anos os registros de estupro nos estados brasileiros aumentaram em 168%: as ocorrências subiram de 15.351 em 2005 para 41.294 em 2010. Levantamento do Ministério da Saúde, de 2009 a 2012, feito a partir dos registros nos hospitais e redes de atendimento, mostrou que os estupros notificados cresceram 157%; e somente entre janeiro e junho de 2012, ao menos 5.312 pessoas sofreram algum tipo de violência sexual.
“Nada mais terrível”
No início da semana, deputadas que compõem a bancada feminina da Câmara participaram de reunião no Planalto para falar sobre o assunto e pedir a sanção imediata da lei. “Esse projeto torna lei um protocolo do SUS que existe há mais de dez anos e que regulamenta o atendimento às vítimas de violência sexual. O número de estupros tem aumentado, e muito, no país e no mundo. O consideramos prioritário porque não pode haver para uma mulher coisa mais terrível do que violência sexual”, afirmou a autora do PL, deputada Iara Bernardi.
A senadora Ângela Portela (PT-RR), uma das relatoras da matéria no Senado, acentuou a importância do item que permite a coleta de dados para denúncia por parte das mulheres. Segundo a senadora, é preciso deixar claro que a medida protege não só as mulheres, mas todas as vítimas de violência sexual, incluindo crianças, homens, transexuais, travestis e idosos. “Como as vítimas terão a certeza, com a lei, de que daqui por diante receberão atendimento condigno, deixarão de sentir medo e ficarão mais seguras para se expor e denunciar o agressor”, ressaltou.
Já a senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) lembrou a tramitação do projeto, que resultou em debates acalorados entre a bancada feminina e religiosa no Congresso, o que ajudou a esclarecer diversos pontos e fez com que fosse aprovado por unanimidade nas comissões e no plenário das duas Casas. “O PL é resultado de discussões amplas e democráticas, motivo pelo qual não vejo como poderia ser vetado”, destacou.