Comunidades terapêuticas nas cinco regiões do Brasil foram alvo de uma inspeção nacional realizada nesta semana pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) – do Ministério Público Federal – e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT).
A ação conjunta é inédita e mobilizou cerca de 100 profissionais, em vistorias que aconteceram simultaneamente em mais de 30 comunidades terapêuticas nos estados do Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo, além do Distrito Federal.
As equipes eram compostas por membros do Ministério Público Federal, peritos de prevenção e combate à tortura, psicólogos dos Conselhos Federais e Regionais de Psicologia e outros profissionais da saúde e do sistema de justiça – como os Conselhos de Medicina, de Serviço Social e de Enfermagem, além de Defensorias Públicas e da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados no Brasil.
Em razão da gravidade dos casos registrados em relatório recente do MNPCT em comunidades terapêuticas no Mato Grosso, o estado foi o escolhido para a vistoria realizada diretamente pelos coordenadores da inspeção nacional: o presidente do CFP, Rogério Giannini; a procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat; e o perito do Mecanismo Nacional Lucio Costa.
Nos dois dias de inspeção, as equipes recolheram documentos, entrevistaram diretores, equipes técnicas e usuários. O objetivo foi identificar as condições de privação de liberdade e se o atendimento respeita os marcos legais que tratam dos direitos a serem considerados na oferta de cuidado a essa população.
“Esse olhar multiprofissional e multi-institucional observando a mesma situação é fundamental porque enriquece a compressão dos fenômenos avaliados”, explica Rogério Giannini.
Ocorrências
Entre as situações encontradas pela inspeção está o caso de uma transexual mantida sem registro em uma unidade masculina, sob condição de extrema vulnerabilidade. Também foram identificados adolescentes internados junto com adultos – os jovens são mantidos sem acesso à escola e em violação às diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
As equipes também observaram estabelecimentos que recebem recursos públicos embora não disponham de registros acerca da entrada e saída de pacientes, dos profissionais que trabalham na instituição, do programa terapêutico a ser implementado ou mesmo dos protocolos que deveriam orientar a adoção de procedimentos para contenção química ou medicamentosa de internos. “Encontramos situações de total ausência de projeto terapêutico singular, individualizado. Isso preocupa porque caracteriza um asilamento não para tratamento, mas apenas para retirar as pessoas do convívio social”, avalia o presidente do CFP.
“Em muitos casos o único tratamento ofertado se resuma à laborterapia, que é lavar o banheiro, fazer a comida, ou seja, um trabalho compulsório de manutenção do local. Vimos também uma ausência de laudos médicos que indiquem a necessidade tratamento. Em muitos casos, as comunidades parecem funcionar como depósito de pessoas”, complementa a procuradora Deborah Duprat
As informações e dados coletados em todo o país serão sistematizados em um relatório que será divulgado nos próximos meses. O documento será encaminhado aos órgãos competentes no sistema de justiça e nas três esferas administrativas. As situações mais graves receberão os imediatos encaminhamentos por parte do Ministério Público.
Investigação
No âmbito do Ministério Público Federal há mais de 50 procedimentos extrajudiciais para apuração de violações de direitos em comunidades terapêuticas. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura – órgão criado pela Lei 12.847/2013 para inspecionar instituições de privação de liberdade, incluindo unidades psiquiátricas – também já relatou más condições encontradas durante vistorias realizadas a esses estabelecimentos. Em seu mais recente relatório, o órgão denuncia privação de liberdade em desconformidade com a lei, indícios de trabalho análogo à escravidão e também de crime de sequestro e cárcere privado.
Para o Conselho Federal de Psicologia, comunidades terapêuticas têm atuado na contramão dos princípios da reforma psiquiátrica estabelecida pela Lei nº 10.216/2001, figurando como ambientes de reprodução de práticas manicomiais e violação de direitos. O órgão foi o responsável pelo único levantamento até então existente no País acerca do funcionamento de instituições voltadas à internação de pessoas que fazem uso de drogas. O documento foi lançado em 2011 e já identificava práticas como castigos físicos e psicológicos, desrespeito à liberdade religiosa, à diversidade na orientação sexual e identidade de gênero, além do confinamento compulsório como regra.
Legislação
O atendimento a pessoas em sofrimento mental – incluindo os decorrentes do uso de álcool e outras drogas – está amparado em diversas normativas e diretrizes legais. A principal delas é a Lei nº 10.216/2001, que instituiu a reforma psiquiátrica no Brasil e estabeleceu um modelo de atenção por meio da garantia de convivência social e da proteção contra maus tratos. De acordo com a legislação hoje em vigor, a pessoa com transtorno mental deve “ser protegida de qualquer forma de abuso e exploração”.
As pessoas em sofrimento mental também estão protegidas pela Convenção Brasileira da Pessoa com Deficiência, aprovada em 2008 com status de emenda constitucional. A legislação diferencia, de maneira intencional, a deficiência mental da intelectual, justamente para incluir as pessoas com transtornos em seu leque de proteção.
Outro importante marco no reconhecimento dos direitos das pessoas com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas é a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), que é imperativa ao proibir que a pessoa com deficiência seja submetida a tratamento ou institucionalização forçada.
Entre as normativas que regulamentam o funcionamento de instituições voltadas a pessoas com transtornos decorrentes do uso, abuso ou dependência de substâncias psicoativas está a Resolução RDC Anvisa nº 29/2001 (que dispõe sobre os requisitos de segurança sanitária) e a Portaria 3.088/2011 do Ministério da Saúde (que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas).
Luta antimanicomial
Até o final dos anos 1980, o manicômio era o ápice de uma concepção que excluía, segregava e negava a cidadania de homens e mulheres condenados a uma espécie de morte em vida – ou à morte de fato – em decorrência de maus tratos e da violência dos eletrochoques e solitárias.
O movimento da luta antimanicomial congrega usuários, familiares e trabalhadores da saúde mental que acreditam na mudança do modelo de atenção às pessoas em sofrimento mental e buscam o combate à internação involuntária em nome de pretensos tratamentos, seja em manicômios tradicionais ou outras instituições que reproduzem a lógica manicomial, o incentivo à convivência em sociedade e, principalmente, o respeito aos direitos humanos. Lembra que, como todo cidadão, as pessoas em sofrimento mental têm direitos fundamentais à liberdade, a viver em sociedade e ao cuidado e tratamento, sem que precisem abrir mão da cidadania.
30 anos da Carta de Bauru
No mês de dezembro, entidades do movimento em defesa da luta antimanicomial vão comemorar os 30 anos do primeiro manifesto público no Brasil pela extinção dos manicômios e contrário a exclusão de pessoas em sofrimento psíquico, a chamada Carta de Bauru.
O “Encontro de Bauru – 30 anos de luta por uma sociedade sem manicômios” será realizado dias 8, 9 e 10 de dezembro deste ano, em Bauru/SP.
Até o final dos anos 1980, o manicômio era o ápice de uma concepção que excluía, segregava e negava a cidadania de homens e mulheres condenados a uma espécie de morte em vida – ou à morte de fato – em decorrência de maus tratos e da violência dos eletrochoques e solitárias.