O livro “A Tragicomédia da Medicalização”, do filósofo José Ramos Coelho, publicado pela Editora Sapiens, faz uma cartografia dos caminhos trilhados pelas práticas médicas desde os gregos até nossos dias. A narrativa provocadora associa filosofia, cultura, ciência e medicina.
Leia entrevista do autor ao portal Planeta Jota.
Planeta Jota – O que o levou a escrever o livro A Tragicomédia da Medicalização: a Psiquiatria e a Morte do Sujeito ?
Ramos – Basicamente duas coisas: em primeiro lugar, uma contradição que ao longo do tempo foi se tornando mais perceptível e se transformou ultimamente numa convicção pessoal: os psicoativos não estão ao serviço do autoconhecimento e da autotransformação das pessoas. Pelo contrário, as pessoas não medicadas que, embora sofrendo de graves distúrbios, procuravam primeiro o tratamento psicoterapêutico, rapidamente se curavam de seus males, enquanto que os indivíduos medicados apresentavam uma tremenda dificuldade de evoluir clinicamente. Em segundo lugar, notei que as pessoas que eram diagnosticadas por algum distúrbio se sentiam como que encaixotadas, presas numa arapuca simbólica. Esse aprisionamento mental, que chamo de “polematação”, ou seja, a transformação do homem em mercadoria, resulta de uma autoimagem internalizada pelo paciente de que está “possuído” por uma doença ou transtorno mental; que a sua perturbação tem uma origem genética e que é o resultado de um desequilíbrio químico no cérebro. Essa visão de si coisificada só contribui para agravar o quadro clínico e criar dificuldades ao tratamento.
PJ – A que você atribui a dificuldade apresentada pelos pacientes medicados com psicoativos?
Ramos – A primeira é de ordem psicológica. Quando o paciente está sofrendo e não sabe o que se passa consigo, ele se sente mais aberto e propenso a entregar-se a um tratamento que lhe permita superar o seu malestar. Por outro lado, quando ele é diagnosticado no seu mal, essa abertura desaparece. Há uma diferença muito grande entre o diagnóstico médico e o psiquiátrico. Se estou febril e com uma forte dor no peito e vou a um médico, preciso saber com urgência se contraí uma pneumonia ou tuberculose, por exemplo. O conhecimento da causa da minha doença é de uma necessidade vital para mim, a fim de que eu possa adotar o tratamento mais adequado para debelar o mal que me acomete. O diagnóstico vai me permitir saber o tipo de remédio ou antibiótico que vai me curar. Mas se eu procuro um psiquiatra sofrendo de algum malestar, a formulação do diagnóstico antes do tratamento tem um efeito iatrogênico ou danoso sobre o psiquismo do paciente.
PJ – Como assim?
Ramos – Quando o psiquiatra diagnostica, o diagnóstico normalmente vem associado a uma prescrição medicamentosa. E os psicoativos, ao aliviarem os sintomas, eliminam também a motivação que poderia levar o indivíduo à cura de seus males. Desta forma, ao invés do remédio ajudar na cura, como ocorre na medicina, no caso da psiquiatria atrapalha.
PJ – Não é bom para o paciente se livrar de um sintoma que lhe causa sofrimento?
Ramos – Não necessariamente. Esse é o maior equívoco da teoria e da prática psiquiátrica atual e, por extensão, da própria medicina: ver a doença ou o sintoma como o mal, dissociado do seu contexto. No caso da medicina essa descontextualização traz um certo dano, mas no caso da psiquiatria é extremamente nefasta. A medicina vê a doença como um mal que “acontece” ao indivíduo e que não tem nada a ver com ele. Mas, na verdade, a doença é como um texto, uma mensagem que se apresenta à pessoa a fim de que ela a decifre e a compreenda. As doenças se apresentam dentro de um contexto subjetivo (os pensamentos, as emoções, as motivações do indivíduo) e estão relacionadas ao estilo de vida da pessoa. Saber por que certas pessoas são acometidas de um determinado tipo de doença ou porque determinados órgãos são especialmente afetados permitirá que a mesma use estratégias mais eficazes e autosustentáveis de lidar com as suas enfermidades. No caso da psiquiatria a situação é bem pior: os psiquiatras, a partir dos anos 80 do século passado, influenciados pela indústria farmacêutica e pela neurociência, deixaram de ter uma visão psicodinâmica dos conflitos das pessoas, ou seja, passaram a ver o sintoma como o problema, quando, na verdade, o sintoma é uma tentativa precária de conciliação ou resolução de um conflito. O sintoma é justamente a porta que permite ao sujeito adentrar no seu conflito existencial. Eliminar essa porta é condenar o paciente à cegueira e à desconexão consigo mesmo.
PJ – Você acha, então, que os psiquiatras não deveriam diagnosticar os seus pacientes?
Ramos – Tem muita coisa errada nessa história. E o primeiro erro é ver aquele que sofre como um “paciente”, e não como um “experienciante”. Ver o outro como paciente é colocá-lo num papel de passividade, é “polematá-lo”. O psiquiatria deveria ver aquele que sofre como um “experienciante”, ou seja, como alguém que, sofrendo de um malestar, pode vir, através dele, ampliar o seu autoconhecimento e transformar-se. O segundo erro diz respeito à postura que o psiquiatra vai adotar diante daquele que o procura. Ele vai estar a serviço de quem? Vai se colocar a serviço do indivíduo, enquanto sujeito, ou da família ou da sociedade que está incomodada com algum aspecto de seu comportamento? Se o psiquiatra vai se colocar a serviço do indivíduo, deveria inevitavelmente adotar a postura socrática do não-saber, que aliás, é não apenas a mais sábia como a mais pertinente ao caso. É a mais sábia, pois o psiquiatra de fato não sabe as razões pelas quais a pessoa está sofrendo. E para descobrir isso, em primeiro lugar, precisa reconhecer o óbvio: que ele ignora o que está acontecendo com aquele que o procura. E é a mais pertinente, pois quando reconhece não saber o que se passa com o outro, abre o espaço para que o outro fale a respeito do seu malestar, atitude que, por si só, terá efeitos positivos no seu quadro clínico. No momento em que o psiquiatra diagnostica, ele interrompe o diálogo e dá o seu veredito: condena o sofredor a ser um doente ou o portador de um determinado transtorno. E nesse processo de condenação a pena a que ele vai estar sujeito é o consumo de algum psicoativo, frequentemente para toda a vida. Essa postura é lastimável. Ela significa a morte do sujeito.
PJ – De que sujeito você está falando?
Ramos – O experienciante, a pessoa que procura viver a sua vida consoante os seus próprios valores, ou seja, a pessoa quee age, pensa, sente e procura realizar os seus desejos e projetos. Esse sujeito principia a morrer no momento em que ele começa a ser classificado e é sepultado quando recebe um diagnóstico.
PJ – O que você propõe, ao que parece, confronta a prática médica. Um psiquiatra não estuda e se forma para bem diagnosticar?
Ramos – No caso do psiquiatra, se ele pensa que ao diagnosticar está exercendo um saber em benefício do experienciante, afirmo que na verdade o que está fazendo é revelar a sua ignorância. Se a psiquiatria deseja apresentar-se como uma ciência, ela deve fundar-se em algum critério de verdade. Aqui estão em jogo dois critérios de verdade: o primeiro, que é a adequação do diagnóstico aos sinais e sintomas do paciente; e o segundo, é o conceito de verdade como aletheia, como desvelamento, ou revelação por parte do experienciante do que se passa consigo. A formulação do diagnóstico, o conceito de verdade como adequação ao sintoma, só poderia adquirir alguma base e sustentação se fosse fundado na verdade do sujeito. Mas o que ocorre, na maioria das vezes, é justamente o contrário: o diagnóstico vem primeiro e aí a verdade do sujeito é suprimida. Essa situação poderia ser descrita metaforicamente como um diálogo de cegos, surdos e mudos: o paciente é um cego que vai procurar um surdo (o psiquiatra que não tem ouvidos para a sua verdade) para continuar cego. E se age como paciente mesmo, ele vai evitar se abrir muito para o psiquiatra. O que ele quer mesmo é um remédio para aliviar os seus sintomas. Essa é a comédia da existência.
PJ – Então isso explica o título do seu livro?
Ramos – Sim. A tragédia da existência é constatar que os homens, em muitos momentos da história, foram tratados como coisas, foram “polematados”. Isso aconteceu em todos os regimes onde as pessoas foram escravizadas. Os senhores antigos, ao vencerem uma guerra, transformavam os vencidos muitas vezes em escravos e se julgavam no direito de vida e morte sobre eles. Se o senhor permitisse ao vencido continuar vivo, o preço desta concessão seria a sua liberdade, ele virar o seu escravo. Há muita semelhança metafórica entre a situação da escravidão e a daqueles que buscam um tratamento psiquiátrico: o preço dele voltar a ser sadio e “normal”, será a supressão de si mesmo enquanto sujeito. Mas a comédia está no fato de que muitas pessoas hoje em dia, estão adotando um estilo de vida onde vivem perpetuamente fugindo de si mesmas. Essa fuga contínua produz muita muitas vezes angústia e ansiedade. E como elas temem o contato consigo mesmas – o qual poderia por um término a essa fuga incessante -, preferem atribuir a causa do seu malestar a algum desequilíbrio químico em seu cérebro, e não a suas escolhas ou omissões. Se veem como coisas e acreditam que a solução de seus problemas seria a ingestão de um psicoativo.
PJ – Mas todas as descobertas feitas pelos neurocientistas, nos últimos anos, não são a confirmação científica dessa tese?
Ramos – Está havendo uma grande confusão e distorção no modo correto de encarar a relação entre o cérebro e a mente. Para explicar a importância que atribuo à bioquímica do cérebro, vou recorrer a uma analogia. Imagine duas situações. Na primeira, um assaltante rouba um carro e foge em alta velocidade colocando em risco a vida das pessoas, tendo a polícia no seu encalço. Na segunda, um motorista, ao saber que sua mãe estava sendo vítima de um assalto, sai em disparada no seu veículo tentando chegar ao local onde ela se encontra a fim de protegê-la.
Consideremos a primeira situação. Se eu perguntasse: o que faz os carros trafegarem mais depressa ou devagar nas estradas da vida? Na opinião dos psiquiatras, médicos e neurocientistas da atualidade, a resposta seria: é a gasolina ou o bom funcionamento do motor. O motivo principal pelo qual o carro conduzido pelo assaltante está em alta velocidade seria o excesso de gasolina que está alimentando o motor, e não a vontade do assaltante em escapar da polícia que o persegue. Isto vem em segundo plano. Na visão mecanicista vigente na atualidade, o que conduz os carros não é a vontade dos condutores, mas a presença ou ausência da gasolina no motor ou o seu bom funcionamento.
Passemos agora para a segunda situação. E acrescentemos que, apesar da vontade do motorista em socorrer a sua mãe, ele não consegue chegar ao local pretendido. E o motivo disso residiu na falta de gasolina no seu veículo. O carro não chegou ao seu destino não porque o motorista assim o quis, mas em função de uma falha mecânica. Esses casos de vez em quando acontecem, seja por descuido do motorista, por falta de manutenção do veículo ou pela presença de algum defeito no carro.
Se tomarmos o condutor como representando a mente e o motor do carro como sendo o cérebro, à pergunta – por que o carro trafega em excesso de velocidade?, dizer que é pelo volume de gasolina que entra no motor não seria propriamente uma inverdade, mas uma impropriedade, uma explicação insuficiente. A gasolina está sendo direcionada ao motor porque o motorista está acelerando. E por que ele está acelerando? Por que não quer ser detido pela polícia. Para se entender a realidade, é preciso ir mais além de uma visão mecanicista que secciona e isola aspectos da realidade que não estão separados.
No segundo exemplo, por sua vez, a explicação mecanicista seria pertinente: o carro para não porque o condutor assim o deseja, mas porque falta gasolina ou apresenta alguma falha independentemente de sua vontade. Na visão mecanicista dos cientistas da atualidade o motor tem mais importância do que o condutor do veículo. Mais adequado seria dizer: salvo algumas exceções, o que ocorre com os carros depende eminentemente da vontade dos seus condutores. É assim que eu penso.
PJ – Na sua opinião, como sugere o seu livro, a psiquiatria está matando o sujeito, o ser.
Ramos – Não gostaria que vissem o meu livro propriamente como uma crítica à psiquiatria. O livro é inspirado em dois grandes psiquiatras e é dedicado à Dra. Nise da Silveira. É preciso fazer uma distinção entre a psiquiatria e a “encefalatria”. O psiquiatra é o profissional que trata o experienciante como um sujeito, através da escuta e diálogos sinceros, vendo o homem como um ser simbólico e dotado de linguagem. O encefalatra é o profissional que propõe o tratamento da mente através do cérebro. O livro é na verdade uma defesa da psiquiatria autêntica contra a encefalatria, pois esta última toma o homem como um mero animal, um ser bioquímico. As explicações bioquímicas, em alguns casos, podem ser as mais adequadas, mas na maioria das vezes a elucidação do malestar das pessoas encontra-se na mente e não no cérebro.
PJ – A Tragicomédia é o seu primeiro livro?
Ramos – Não. Já escrevi cinco livros antes. O primeiro, um livro de fábulas – A Colina e o Abismo, foi escrito em coautoria com José Paulo de Melo Cabral. O segundo – A Magia na Aldeia Global, aborda os comerciais televisivos a partir de uma perspectiva antropológica. O terceiro – De Narciso a Édipo: a criação do artista, contem a minha tese de doutorado em psicologia clínica. E o último – A terapia da excelência: uma introdução ao método da estética existencial, apresenta uma sistematização preliminar do meu método terapêutico. Este livro publicado agora pelo Sapiens é o resultado das observações a partir de minha prática como terapeuta.