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‘Não é função da PM e da GCM lidar com dependentes’

“É uma redenção do quê?”, questiona o padre Júlio Lancellotti sobre o programa de João Dória que substitui o Braços Abertos

No domingo 21, uma operação com 900 policiais retirou de maneira violenta dependentes químicos e prendeu traficantes na região da Cracolândia. Segundo o prefeito João Dória, que foi ao local para anunciar o fim do Programa De Braços Abertos (DBA), a Cracolândia “acabou”. 

Não é a primeira vez que é decretado o fim do uso e venda de drogas na região do centro de São Paulo. O cenário, consolidado no local há mais de 20 anos, apenas se pulverizou com a ação ocorrida no domingo.

O diagnóstico é do padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral da População de Rua e uma referência no cuidado a dependentes químicos. Na entrevista a seguir, Lancelotti afirma que “descer a borracha” não funciona. “Uma operação como essa não faz com que eles deixem de usar. O que mudou mesmo foi a cena do uso.”

CartaCapital: Quais são as consequências da atuação do poder público ontem na Cracolândia? Para onde foram essas pessoas que estavam ontem na Cracolândia?

Júlio Lancellotti: A primeira consequência que a gente vê é a fragmentação e a pulverização de um grupo pela cidade. A prefeitura disse que alguns foram acolhidos. Temos que ver para quais centros de acolhimento levaram os dependentes e quem foi para cada centro, porque nós ainda não sabemos. Mas ainda se percebe um grupo grande.

CC: O que mudou com essa pulverização?

JL: Muitos ainda estão usando drogas, porque uma operação como essa não faz com que eles deixem de usar. O que mudou mesmo foi a cena do uso, como os técnicos gostam de falar. Eles desmontaram o palco, cenário da Rua Helvética. Alguns estão fragmentados, outros foram recolhidos em centros de tratamento. Agora serão os dias que mostrarão para nós como o tráfico se reorganizará.

CC: A Guarda Civil Metropolitana e a Polícia Militar estão preparadas para lidar com dependentes químicos?

JL: Não é função da PM e da GCM lidar com os dependentes. A função de lidar com a dependência química é da saúde e da assistência social, em resposta às inúmeras necessidades e carências que os dependentes têm. A função específica da segurança pública, tanto estadual como municipal, é o combate ao tráfico. A ação da polícia é de inibição, repressão, mas que que atingiu a ponta: os usuários. A lógica utilizada parece ser que sem usuários, não terá traficante. Mas não é uma coisa tão linear e simples assim. A utilização das drogas é um sintoma de várias questões que estão envolvendo essas pessoas. As filmagens mostram uma ação repressiva sobre os que são chamados de usuários.

CC: Como o senhor vê a presença ostensiva de policiamento no local? Tem a ver com a criminalização de uma questão que é de saúde pública?

JL: Sem dúvida. A presença policial é muito massiva. Poderíamos ter, ao invés de todos aqueles policiais, a mesma quantidade em assistentes sociais, psicólogos e psiquiatras. Mas foram centenas de policiais dando tiros e jogando bombas. Agora o poder público ocupou aquele espaço para que não seja reocupado. É uma operação reativa sobre os efeitos e não sobre as causas.

CC: O senhor tem críticas ao programa De Braços Abertos? E ao programa Recomeço, de Geraldo Alckmin?

JL: Todos esses programas são parecidos em alguns aspectos e diferentes em outros. Existe a questão da redução de danos e da abstinência imediata. São posturas diferentes da área da psiquiatria e da saúde mental, mas todos os tratamentos têm uma limitação: nenhum deles traz uma resposta diplomática, pronta e completa. Para algumas pessoas a redução de danos funciona, para outras não. Para algumas pessoas a abstinência completa funciona, para outras não. Então não dá para tomar nenhuma atitude desvinculada do conjunto das necessidades das pessoas. Não dá para dizer que tem um remédio igual para todos. Não funciona descendo a “borrachada”.

CC: Como você espera que seja executado o Programa Redenção do prefeito João Dória, que falou que pretende unir os dois programas anteriores?

JL: A palavra redenção é de cunho religioso, mas está sendo usada com cunho terapêutico. É uma redenção de quê? Está redimindo de quê? Parece que está redimindo alguém de uma culpa. Eles tem culpa do quê? Depende de quem olha, tem gente que diz que eles usam droga porque eles querem, uma visão moralista, preconceituosa. Tudo tem que ser pesado, não dá para gente categorizar com sistemas binários: é bom ou ruim.

CC: O prefeito João Dória anunciou que a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento estará presente nas ações do programa Redenção. A especulação imobiliária e a gentrificação têm um pé nessa decisão?

JL: Sem dúvida. Esse aspecto está presente em todos os programas, em tudo que se faz naquela região, de muito interesse imobiliário. É uma das regiões planas da cidade, que tem terminais ferroviários e metroviários muito importantes. Uma área onde estão equipamentos históricos, como Sala São Paulo, a Pinacoteca, com um interesses turístico e imobiliário muito fortes. A própria Porto Seguro construiu na área um teatro de 34 milhões de reais. O Plano Nova Luz  de renovação urbana é antigo. Alguém comprou e agora precisa ser rentável.

CC: João Dória anunciou que esses dependentes químicos trabalharão em empresas privadas. Como vai se dar essa aproximação com os dependentes para que eles trabalhem nessas empresas, sendo que até agora só foi utilizada a violência?

JL: Pois é, isso é um programa que não acontece de repente. O trabalho pode fazer parte da transformação. Existe muita gente que trabalha e usa droga. Ou acham que o crack só é usado lá? É um processo pedagógico e social difícil, tem que ter muita superação de preconceito. As pessoas que estão muito debilitadas, o problema é sintoma de situações prévias. E os que estão com problema de saúde? Problema de saúde mental? Com doenças infectocontagiosas?

CC: A presença do PSDB no Executivo nas esferas municipal e estadual tem impacto sobre a criação do programa Redenção?

JL: Eu acho que em alguns momentos eles estão mais coesos. Mas a repressão da Polícia Militar e da GCM aconteceu em todos os outros governos também. Na repressão, todo mundo se entende.Quantas operações não aconteceram na Cracolândia? Essa não é a primeira. Ainda não dá para dizer o que vai acontecer ainda, se isso vai melhorar ou piorar. O fato de não ter nenhuma discordância não ajuda, porque fica uma unanimidade que não permite discordância. É preciso trabalhar com autonomia, no pluralismo. As pessoas são diferentes. É um grupo muito heterogêneo. E existem diferentes visões, clínicas, psiquiátricas.

CC: Podemos falar em fim da Cracolândia, como afirmou o prefeito?

JL: O Dória não é o primeiro que decreta o fim da Cracolândia. Acho que a sucessão dos dias vai dizer se é o fim. Mas com certeza é o fim daquele cenário, que vai ficar policiado o tempo todo agora. É uma área ocupada e uma cena pulverizada.

CC: Na sua opinião, quais são os caminhos alternativos?

JL: Fica difícil dizer quais são os melhores caminhos, porque fica parecendo que sabemos o que é o melhor. Talvez o que a gente saiba são quais caminhos não são os melhores. O caminho a não se seguir é o da repressão, violência, moralismo, discriminação,  preconceito. Como também não é bom o caminho trilhado pela corrupção e pelo crime organizado. O melhor caminho é sempre o que respeita a liberdade e a autonomia da pessoa e a enxergue na sua complexidade. Aquele que não busca soluções simplistas e nem imediatistas.

Cada pessoa que está ali é uma história e cada história é única. As pessoas não são fotocópias umas das outras. Então elas não podem ser tratadas como um pacote. As áreas de psicologia, antropologia, psiquiatria, segurança pública têm que levar em conta essa complexidade que forma as pessoas.

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