“O poder do indivíduo” é o título de um artigo publicado no jornal Zero Hora, no dia em que se celebra a independência (?) do Brasil, assinado pelo advogado Michel Gralha. Qualificando o momento que vive o país como difícil, enumera direitos coletivos suprimidos, segurança e sistemas de saúde em colapso, o ente público falido, indicando como saída para esses problemas “deixarmos de esperar o “grupo” e agirmos individualmente. Se queremos melhores condições, temos de dar valor para quem realmente pode mudar o país: o indivíduo.”
Mais do que difícil, é impossível aceitar essa receita. Bem ao contrário dela, a ética mais elementar, a lei por menos aberta que seja aos direitos sociais, as religiões e crenças, todas têm uma característica comum: acautelar-se contra o individualismo. Fazem-no conhecendo o seu passado e o seu presente de egoísmo, ganância, autoritarismo, arbitrariedade, indiferença em relação às necessidades alheias, às desigualdades inerentes à pobreza e à miséria.
O seu maior defeito é o seu poder de criar injustiça. Com raras exceções, por nem enxergar a/o próxima/o, a sua conduta deixa de abusar do interesse próprio, doa a quem doer. Quando esse é econômico, então, a violação do direito alheio costuma se vestir de legal, na base da “liberdade de iniciativa”. Enganar, mentir, fraudar, isso tudo passa a inspirar formas disfarçadas de ameaçar ou violar o direito alheio, seja o individual seja o coletivo.
O direito de propriedade, por exemplo, seguramente o mais individual e o mais importante do sistema capitalista, com garantias e efeitos bem superiores ao direito à vida, como Norberto Bobbio provou em seu “A era dos direitos”, cria tantos problemas para a humanidade toda, que os países onde ele impera tentam reconhecê-lo apenas quando cumpre uma função social. Assim o fazem, especificamente, a Constituição brasileira, o Estatuto da Terra e o da Cidade, entre outras leis.
A sua força econômica passa incólume por tudo isso, coberta pela dita liberdade de iniciativa. Ao mínimo sinal de ele ser ameaçado, quando até a exploração do trabalho escravo, escondida por essa liberdade pode ser detectada – como aqui se tem denunciado mais de uma vez – seus defensores não acham que essa liberdade precise de melhor detalhamento e conceituação legal. Para eles, quem precisa disso é, justamente, a vítima dessa liberdade de iniciativa, no caso, o trabalho escravo…
Comparado assim o poder individual do direito de propriedade com os dos direitos sociais, é evidente a desproporção da desigualdade em seu favor. Sua função social, com ralo reflexo na realidade, serve mais para legitimar a própria lei do que reprimir as disfunções do seu exercício.
A encíclica “laudato Si”, do Papa Francisco, pode responder ao artigo do Dr.Gralha, analisando precisamente o sentimento mais nobre da pessoa humana, praticamente esquecido pelo articulista. Ao sustentar a ecologia integral, como forma de se defender e preservar a vida, ele mostra como a casa comum, por ele assim denominada a terra, primária condição de vida, depende do respeito devido, igualmente, a um bem comum, próprio de um “amor social”:
“O amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram construir um mundo melhor. O amor à sociedade e o compromisso pelo bem comum são uma forma eminente de caridade que toca não só as relações entre os indivíduos, mas também as macrorelações como relacionamentos sociais, econômicos, políticos. Por isso, a Igreja propôs ao mundo o ideal de uma “civilização do amor”, O amor social é a chave para um desenvolvimento autêntico. Para tornar a sociedade mais humana, mais digna da pessoa, é necessário valorizar o amor na vida social – nos planos político, econômico, cultural – fazendo dele a norma constante e suprema do agir.” {…} “Desta forma cuida-se do mundo e da qualidade de vida dos mais pobres, com um sentido de solidariedade que é, ao mesmo tempo, consciência de habitar em uma casa comum que Deus nos confiou.”
É bem pouco provável que até não crentes discordem disso, mas é quase certo que um/a individualista, se não às claras, para não ser visto como desumano/a, reservaria um juízo de tranquila surdez para esse apelo.
Não é o indivíduo que vai mudar o mundo como prega o Dr. Gralha. O “cada um por si e Deus por todos”, inerente à cultura ideológica individualista e privatista do interesse próprio capitalista, não tem mais como se justificar. Se assim ainda o faz, ignora tanto quem seja Deus quanto quem sejam todas/os.