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O Parlamento apresenta suas armas: qual saúde mental?

Deputados e senadores lançaram Frente para uma “nova” política de saúde mental, que contraria a Reforma Psiquiátrica e se pauta pelo lucro da indústria da loucura.

Trechos da Declaração Universal de Direitos Humanos estampados em banners pendurados no lado de fora dos prédios dos ministérios. Um mosaico de colchas de retalhos para contar a história da luta de 30 anos contra a AIDS no gramado da Esplanada em frente ao Ministério da Saúde. Uma exposição permanente da Constituinte no Salão Negro do Congresso Nacional. Esse foi o trecho visual-imagético percorrido nas proximidades do Eixo Monumental até chegar ao Salão Nobre da Câmara dos Deputados, em Brasília, onde ocorreu no dia 27 de novembro uma cerimônia que certamente afeta interessados no campo da Saúde Mental ao questionar tudo aquilo que apareceu no caminho: o direito à livre manifestação, o exercício dos direitos humanos e o cumprimento dos direitos constitucionais.

Essa semana foi lançada a Frente Parlamentar Mista em Defesa da Nova Política Nacional de Saúde Mental e da Assistência Hospitalar Psiquiátrica, que inicialmente era composta por 228 deputados e 4 senadores. Ela foi criada em agosto desse ano, e assim que veio a notícia de sua instalação, prontamente o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e a Federação Nacional dos Psicólogos (Fenapsi) deram início ao movimento de convencer parlamentares do campo progressista que haviam aderido à Frente a se retirarem da mesma. Os defensores da Reforma Psiquiátrica entenderam que os interesses representados por esses parlamentares se referiam à privatização da saúde, ao lucro da “indústria da loucura” e, nas palavras do CFP, tratava-se de uma atitude “obscurantista” que representava o “retorno ao período de tortura”.

Assim, nos dias que sucederam a notícia, que rapidamente circulou nos movimentos da luta antimanicomial, foram despachados 25 requerimentos de retirada da Frente – 20 deputados do Partido dos Trabalhadores (PT) e 5 do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) debandaram do grupo. Atualmente, então, a Frente é composta por 203 deputados federais e 4 senadores: 28 do PR; 28 do PP; 24 do MDB; 18 do PSD; 13 do PRB; 13 do DEM; 11 do PDT; 11 do PSB; 10 do PSDB; 9 do PODE; 6 do PROS; 6 do PSC; 5 do PT; 5 do PTB; 4 do Patri; 3 do Avante; 3 do PPS; 3 do PSL; 2 do PHS; 2 do PCdoB; 2 do PV e 1 da Rede.

Coordenada pelo deputado Roberto de Lucena (PODE/SP), e tendo como vice Ricardo Barros (ex-ministro da saúde no governo Temer e deputado pelo PP/PR), a Frente tem como objetivo “promover um amplo trabalho na promoção de debates, diálogos e conscientização dos direitos e da proteção das pessoas acometidas de Transtorno Mental, sobre questões que envolvem a saúde mental, a integridade e a dignidade da pessoa”, segundo o site do coordenador. Lucena, que se apresenta em defesa da vida e da família nas suas redes sociais, é também pastor e fundou em 1991 a Igreja O Brasil para Cristo, que hoje tem mais de meio milhão de membros e 3 mil templos pelo país.

“Um debate muito contaminado com questões ideológicas”

Na medida em que as pessoas iam se acomodando nas apenas 48 cadeiras provisoriamente colocadas no Salão Nobre, configurava-se uma notável divisão entre os presentes. Ao lado esquerdo de quem chegava, uma menina que estava segurando A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, e um homem que vestia uma blusa do movimento antimanicomial estavam acompanhados por um grupo de pessoas diversas com roupas comuns: mulheres, jovens, idosos, etc. Segundo Andressa Ferrari, trabalhadora do CAPS Taguatinga e militante do Movimento Pró-Saúde Mental do Distrito Federal, estavam presentes ali diversos usuários, familiares, trabalhadores e demais pessoas que defendem a Reforma Psiquiátrica. Dentre eles, além do CAPS Taguatinga, estavam o CAPS Ceilândia, os dois CAPS de Samambaia e o CAPS da Assa Norte.

Já ao lado direito havia uma grande maioria masculina com mais de 50 anos e vestindo ternos. Com cerca de 100 presentes no total e aproximadamente 30 minutos de atraso, foi dado início à cerimônia. Um grito veio do fundo: “Nenhum passo atrás, manicômio nunca mais! Fora, Quirino!”. Entreolhares.

O silêncio foi quebrado rapidamente por vaias e aplausos, distribuídos aparentemente de forma igual, quando o cerimonialista anunciava os presentes para se dirigirem à frente e fazerem uso da palavra: o ex-ministro Ricardo Barros, o coordenador nacional de Saúde Mental Quirino Cordeiro, Juliano Almeida (Diretor do Departamento de Psiquiatria da Federação Brasileira de Hospitais, a FBH) e Luiz Aramicy Bezerra Pinto (presidente da FBH).

O primeiro a falar foi Lucena, que, se referindo às intervenções do público, disse que o “debate está muito contaminado com a questão ideológica (…), não podemos permitir que haja muros”. O deputado seguiu na linha de afirmar que, ao contrário do trabalho feito anteriormente pelos defensores da Reforma Psiquiátrica, a Frente ganha esse lugar privilegiado por pensar diferente, um pensamento que caracterizou como responsável por conquistar a família brasileira.

Quem roubou a cena em seguida foi Ricardo Barros, afirmando a iminência de uma epidemia de autismo entre as crianças do país, sendo este um exemplo de como a saúde mental é uma  necessidade da sociedade para os próximos anos. Além do autismo, Barros mostrou preocupação com as novas drogas sintéticas de baixo custo. “As comunidades terapêuticas tiveram um grande apoiamento na nossa gestão”, disse, sendo vaiado logo em seguida e respondendo indiretamente falando que “alguns não têm sido respeitosos como aprendemos com nossos avós”.

“Nós viemos de vários serviços para cá, em diversas vans, e quando nós estávamos aqui já nos manifestando uma parte de nossos colegas que vieram lá do CAPS Candango foram impedidos de entrar no local. Durante nossa estadia aqui o tempo todo nós fomos orientados a ficar calados, a ter educação, a dizer que a nossa manifestação só poderia ser feita de forma escrita. No início eles prometeram que nós teríamos espaço de fala, espaço que não tivemos”, disse Andressa, do CAPS Taguatinga.

Em seguida, Quirino Cordeiro iniciou a sua fala também entre vaias e aplausos, parabenizando Lucena pela importante iniciativa de criação da Frente. Avaliou sua performance na Coordenação Nacional de Saúde Mental como corajosa, pois, na sua opinião, durante os 30 anos que o antecederam a gestão era “absolutamente ideológica”, com “ausência total de comprometimento”.

Disse que se deparou com uma situação dramática de recurso público se esvaindo, citando serviços de saúde mental que recebiam financiamento do Ministério da Saúde e sequer existiam. “A grande questão é que essa indignação que toma conta de alguns aqui não tomou conta dessas mesmas pessoas naquele momento. Ou seja, a indignação é seletiva. A gente tinha uma situação de serviços cuja a produção era ínfima. Leitos de saúde mental em hospital geral com taxa de ocupação menor que 15% e o Ministério da Saúde aportando recurso de mais de 80 milhões para custear leitos que não serviam para nada”. Mais adiante, Quirino complementou: “Isso é problema de gestão, que não existia no Ministério da Saúde, e graças ao doutor Ricardo Barros que implementou um sistema de gestão importante no Ministério da Saúde é que nós conseguimos fazer essas ações. A gente teve problemas de modelo assistencial. Na instituição da RAPS [Rede de Atenção Psicossocial] em 2011, vários serviços importantíssimos para a prestação de cuidado aos pacientes com transtornos mentais não foram incluídos na RAPS, como ambulatórios, hospitais psiquiátricos e hospitais-dias. Primeiramente por questão ideológica, de entendimento”.

Ao falar da “nova política de saúde mental”, Resolução nº 32 de 14 de dezembro de 2017 da Comissão Intergestores Tripartite, Quirino afirmou que a motivação para tal foi uma evidência de que mais de 700 CAPS, 1000 leitos, 600 residências terapêuticas e 100 milhões de acolhimentos deixaram de ser realizados mesmo que recebendo investimento do governo federal. “E esse mesmo pessoal que tá aqui simplesmente não se manifestava”, disse o coordenador provocando o movimento social presente que respondeu com a palavra de ordem “Não vamos nos calar!”. “É realmente difícil ouvir a verdade”, complementou Quirino. “Foi isso que motivou [a “nova política de saúde mental”], não foi questão ideológica, não foi blá, blá, blá, não foi conversa fiada. O que a gente faz a partir de agora é ter uma política séria baseada em gestão dos recursos públicos com respeito e probidade com o gasto público, coisa que nunca aconteceu até então. E agora que a gente está aqui na casa do povo, eu acho que vale a pena essa Frente Parlamentar jogar luz para tudo isso que aconteceu no passado, agora eu acho que vale a pena a gente fazer isso, a gente saber onde é que está o dinheiro da saúde mental no país. Diante dessa realidade eu gostaria então de parabenizar mais uma vez os membros dessa comissão, gostaria de parabenizar a todos que enfrentam essa situação vexatória que se apresenta por militantes que em muito estão afastados da realidade dos pacientes”. E encerrou seu pronunciamento.

Finalizada a cerimônia, Andressa identificou que “essa falta de diálogo vem deles mesmos, porque eu costumo dizer que o que está em jogo hoje é uma política de mercado, existem pessoas que lucram com a loucura. As pessoas que lucram com a loucura são os donos de hospitais. Assim que eu cheguei me perguntaram de qual empresa eu era. As empresas defendem o quê? Interesses de mercado. Existem alguém que lucra com isso, que não é o usuário de saúde mental. Então é por isso que nós lutamos. A Coordenação Nacional de Saúde Mental hoje está a serviço da Associação Brasileira de Psiquiatria, infelizmente. E a ABP quer lucrar com o sofrimento das pessoas”.

“Assim que eu cheguei me perguntaram de qual empresa eu era”

A “nova política de saúde mental”, de acordo com um documento distribuído pela FBH no início do lançamento da Frente Parlamentar, contou com o apoio de mais de 70 entidades – das quais se destaca a própria FBH, por iniciativa própria e reconhecimento dos deputados presentes. Um parágrafo do mesmo documento e outros trechos foram reproduzidos integralmente pelo coordenador nacional de saúde mental, ficando claro o seu lugar de fala e representatividade. Ademais, a FBH estava ali representada pelo seu presidente, Luiz Aramicy Bezerra Pinto e o diretor do Departamento de Psiquiatria, Juliano Almeida.

A FBH é uma entidade associativa, sem fins lucrativos, que, há mais de 50 anos, representa o setor hospitalar brasileiro — mais de 4.300 estabelecimentos privados de saúde. Atualmente é membro titular na Câmara de Saúde da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) e tem como objetivo a “luta pela mitigação da crise financeira que atinge uma significativa parcela dos hospitais particulares conveniados ao SUS, aí incluídas as instituições de caráter beneficente e as clínicas especializadas, como as de nefrologia”, de acordo com dados encontrados em seu site.

Segundo o documento distribuído na cerimônia, com a “nova política de saúde mental” os hospitais psiquiátricos também poderão participar do Incentivo Financeiro do Programa 100% SUS, “direito que lhes era negado. Ademais, as ações da “Nova Política de Saúde Mental” não serão mais sinônimo de fechamento de leitos e hospitais psiquiátricos (…) Além das ações assistenciais, o Ministério da Saúde também começa a atuar com vigor na esfera da prevenção. Na frente de dependência química, o Ministério da Saúde passa a ajustar e fazer novos estudos dos Programas que vinham em curso até o presente momento. Isso, pois os estudos conduzidos a partir da aplicação desses Programas mostraram resultados bastante insatisfatórios, sendo que um deles chegou a causar ação iatrogênica”.

Da mesma forma que as falas no evento colocavam o movimento social como a parte anacrônica, puramente ideológica e intransigente, o documento da FBH faz uso da pauta histórica dos grupos dos movimentos sanitário e antimanicomial, quando reclama para si o cumprimento da Lei da Reforma Psiquiátrica e afirma a defesa do SUS para defender seus objetivos: “as mudanças nas políticas descritas foram realizadas em obediência à Lei 10216/2001, que redirecionou o modelo de assistência psiquiátrica no Brasil e estabeleceu direitos dos portadores de transtornos mentais (…). Novos componentes da RAPS, qualificação técnica dos Serviços e dos profissionais, incorporação das melhores práticas e melhora da retaguarda para crises são medidas a favor dos pacientes e suas famílias e contra a cronificação, o desamparo, o abandono, o encarceramento e a morte precoce, ou seja, em defesa dos Direitos Humanos. Em última análise, são os portadores de transtornos mentais e suas famílias os principais interessados e afetados pela falta de recursos, falta de vagas assistenciais de qualidade e falta de uma Rede que contemple de fato as diferentes necessidades e cenários existentes na Saúde Mental. Assim, as novas ações ocorrem em defesa do SUS, do cidadão e de seu direito a um atendimento efetivo, humanizado e de qualidade em saúde mental. O SUS passa a oferecer uma rede assistencial equilibrada, ofertando tratamento, de acordo com as necessidades dos pacientes. Assim, a política pública passa a se adequar às demandas dos pacientes, e não o contrário”. A FBH e os movimentos sanitário e antimanicomial defendem os mesmos interesses?

A disputa pela história da Saúde Mental e outras Frentes Parlamentares

A Frente Parlamentar Mista em Defesa da Nova Política de Saúde Mental e da Assistência Hospitalar Psiquiátrica não é a primeira frente parlamentar que tem como tema principal a saúde mental. Em 2016, em apoio ao movimento “Fora Valencius”, as duas primeiras Frentes sobre o assunto foram criadas, uma na Câmara dos Deputados, sob a presidência da deputada Érika Kokay (PT/DF), e outra na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), sob a presidência de André Ceciliano (PT/RJ) que após um ano foi substituída por Flavio Serafini (PSOL/RJ). Ambas receberam o mesmo nome e tem objetivos semelhantes: Frente Parlamentar em Defesa da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, para promover os direitos das pessoas com transtornos mentais e com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas, monitorando e fiscalizando as políticas públicas e ações governamentais relativas à temática.

A Frente da Câmara contou com 270 adesões de deputados federais quando foi criada, mais da metade do parlamento. Já a Frente da ALERJ teve 7 signatários iniciais, ampliou para 8 em seu percurso e, para a próxima legislatura, contará com ao menos 10 parlamentares. Isso porque foi iniciativa da própria Frente da ALERJ a criação da Plataforma Eleitoral Antimanicomial, em que diversos candidatos se compromissaram com as propostas elaboradas coletivamente pelo grupo.

Além da Plataforma outras importantes iniciativas foram realizadas, como a aprovação de um Pacto pela Não-Implementação da “nova política de saúde mental” assinado pelos gestores do estado e município; atuação no fechamento da Clínica Alfredo Neves (Niterói – RJ); acompanhamento da pauta da adoção compulsória com diligência em abrigos infantis e audiência pública sobre o tema; realização do Fórum Cannabis Medicinal e Educação, etc. Ainda, durante a presidência de Serafini, o deputado foi autor da Lei 8154/2018 que estabelece o Cofinanciamento do Estado para a RAPS, e de PLs como nº 3942/2018, que proíbe o estado do Rio de Janeiro de habilitar, qualificar, credenciar, realizar convênios e financiar Comunidades Terapêuticas, e também o nº 3625/2017, que institui a Política Estadual de Redução de Danos.

No Rio de Janeiro, a Frente Parlamentar da ALERJ foi determinante para acolher os movimentos de trabalhadores, usuários e familiares num contexto em que as manifestações de rua estavam impossibilitadas de acontecer dada a repressão policial paralela à intervenção militar, dentre outros fatores. As reuniões são abertas e receptivas, o que é proposto é a circulação da palavra sem hierarquia. Dessa forma o parlamento fluminense é ocupado cotidianamente pelo povo comprometido com uma saúde mental que liberta, a partir do momento em que, por exemplo, pessoas de bermuda e sem documentos quebram, literalmente, o protocolo, forçando a instituição a se adaptar às singularidades do coletivo diverso que são os atores da Reforma Psiquiátrica.

A diferença entre os interesses da FBH, representados pela Frente do Congresso Nacional, e os interesses dos movimentos sanitário e antimanicomial, representados pelas Frentes da ALERJ e da Câmara dos Deputados, pode ser ilustrada no que Andressa nos contou: “Nós vamos continuar resistindo em todas as frentes. Nós sabemos que o cenário é muito difícil, nós fomos reprimidos aqui e sabemos que essa repressão aos movimentos sociais só tende a piorar. Mas a Reforma Psiquiátrica é um movimento que nasce essencialmente da democracia, e por mais que eles queiram destruir a nossa história, os nossos serviços, nós recontaremos nossa história, reconstruiremos os nossos serviços e destruiremos todas as instituições asilares”.

É simples. A origem de um movimento e/ou de uma Frente Parlamentar nos conta sobre a que veio e aponta honestamente seus objetivos. Nomear “saúde metal” ou “reforma psiquiátrica e luta antimanicomial” já posiciona os atores contrariamente. Trata-se sim de ideologia, de ambos os lados, e também de técnicas que não são neutras. Não há separação e, mais uma vez, a história se coloca em disputa: por um um museu de grandes novidades o velho se traveste de novo e, obtendo êxito, daqui a outros 30 anos, junto com o direito à livre manifestação, o exercício dos direitos humanos e o cumprimento dos direitos constitucionais, “Reforma Psiquiátrica” será o saudoso nome de uma exposição nos prédios do Ministérios, no gramado da Esplanada, no Salão do Congresso…

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