Economista e técnico do Ipea defende que, pelo fortalecimento do sistema de saúde, partidos, centrais e sociedade combinem luta em defesa do sistema com a regulamentação do mercado de planos privados
No Brasil, a luta política por melhores condições de saúde e de assistência médica em todos os níveis de atenção é vital. Os partidos do campo democrático-popular, as centrais sindicais e a sociedade civil organizada precisam combinar a luta em defesa do Sistema Único de Saúde (SUS) e da regulamentação do mercado de planos de saúde à construção do socialismo.
Sem projeto estratégico para fortalecer o SUS, uma visão fiscalista, em que o fomento ao mercado de planos aparece como solução pragmática para desonerar as contas públicas, passa a fazer parte do ideário de setores economicistas no governo (social-liberalismo).
Em termos concretos, o subfinanciamento e a captura da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) revelam uma opção, consciente ou não, pelo crescimento e pela autorregulação do mercado de planos, valorando positivamente o subsistema privado, a estratificação de clientela e um modelo de proteção liberal.
Nessa linha, a integração social da nova ‘classe média’ via consumo de planos de saúde passa a ser vista enquanto elemento de legitimação política do governo às vésperas das eleições de 2014. Mas esse equívoco poderá trazer sérias consequências para as condições de saúde da população: até nos Estados Unidos, em plena crise econômica internacional, o presidente Barack Obama atacou o mercado de planos e propôs uma ampliação da intervenção governamental devido à ineficiência e aos altos custos que o modelo privado impõe ao sistema de saúde estadunidense.
Quais seriam, então, os desafios para mudar esse quadro e reconstruir um modelo de proteção social público na área da saúde, tendo como norte as experiências exitosas do universalismo?
O modelo liberal não foi aquele adotado pela maioria dos países desenvolvidos, que fazem parte da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Por sua vez, no Brasil, após a extinção da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF) – que foi capitaneada pela oposição ao governo Lula em fins de 2007 – o Congresso Nacional aprovou a regulamentação da Emenda 29 sem o comprometimento de a União participar com dez por cento do seu orçamento, ignorando, em parte, os problemas de financiamento e gestão do SUS.
No entanto, em razão das atuais circunstâncias históricas, as relações mercantis do setor de saúde não serão extintas por decreto. Em que pese a lógica excludente do mercado, encerrada nos lucros extraordinários e na radicalização da seleção de riscos, a sua negação precisa ser mediada na teoria e na prática, no contexto de uma estratégia defensiva de acúmulo de forças, que pressuponha uma agenda de reforma pública do sistema de saúde brasileiro em direção à consolidação do orçamento da seguridade social e ao fortalecimento do SUS.
Além do mais, essa agenda de reforma deve reivindicar que a regulação do mercado seja polarizada pela lógica do seguro social e que o mercado passe a funcionar sem recursos financeiros do Estado, sob pena de que a tese correta, aquela contrária à estratificação de clientela, continue impotente, na prática, para barrar o parasitismo do mercado de planos de saúde em relação ao Estado, ao padrão de financiamento público e ao SUS.
Igualmente, não existe a rigor uma demanda ‘extra-SUS’, uma vez que a clientela da medicina privada utiliza, largamente, os bens e serviços do SUS (vacinação, urgência e emergência, bancos de sangue, remédios, serviços de alto custo e de alta complexidade tecnológica etc.). Deste modo, se não bastassem os subsídios do Estado que patrocinam o mercado de planos de saúde desde 1968, o SUS hoje socializa os custos deste mercado.
De sorte que o problema não é o SUS, e sim o mercado – que acumula capital, radicaliza a seleção de riscos e retira recursos financeiros crescentes do SUS, em detrimento da qualidade da atenção médica e da saúde pública da população. Veja, de um lado, a expulsão dos doentes crônicos e idosos dos planos de saúde, e, de outro, a baixa remuneração dos prestadores médico-hospitalares. Até onde vai esse mercado?
Desse modo, sem contar com recursos oriundos da renúncia fiscal, se, além do SUS (Estado), o mercado (capitalismo) fosse pressionado ‘por dentro’ pelo seguro social (mutualismo), estariam dadas condições mais realistas para tornar o mercado de planos de saúde, de fato, suplementar. Em particular, os vasos comunicantes, que permitem ao mercado resolver suas contradições econômicas por meio do Estado, seriam asfixiados, lançando novo olhar sobre o projeto estratégico de fortalecimento do SUS.
Como contraponto à tendência de privatização do sistema de saúde brasileiro, faz-se necessário afirmar os fundamentos constitucionais do SUS, o qual está investido legalmente da tarefa de alargar o direito social à saúde, com o propósito de convencer a sociedade da superioridade do modelo universal.
Contudo, não basta construir um programa mínimo em defesa do SUS, que negue a sua não universalidade (para que este deixe de se negar como direito social) – seja para superar sua crise de legitimidade, seja para disputar hegemonia com o mercado, tendo em mente, a um só tempo, reduzir os incentivos governamentais e mudar as relações de poder que predominam na arena setorial.
O Estado parece estruturalmente prisioneiro do seguinte dilema: ou estatiza o sistema (radicalizando seu papel intervencionista) ou mantém a forma privada de atividades socialmente importantes, aplicando mecanismos de subvenção estatal (incentivos governamentais).
Desse modo, para fortalecer a capacidade regulatória do governo, parece oportuno também defender no terreno da reforma sanitária a ideia de que a ‘saúde suplementar’ seja regulada como atividade privada de interesse público, mediante o regime de concessão de serviços públicos. Para tanto, seria necessário alterar no Congresso Nacional as normas que designam a assistência à saúde como livre à iniciativa privada (artigo 199 da Constituição Federal e art. 21 da lei n. 8.080).
* Carlos Octávio Ocké-Reis é economista, doutor em saúde coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com pós-doutorado pela Yale School of Management (New Haven, EUA). Técnico de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Autor do livro ‘SUS: o desafio de ser único’ (Editora Fiocruz). Membro da rede Plataforma Política Social