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Paulo Amarante: Medicalizar problemas cotidianos faz mais mal a saúde do que a depressão

Entrevista com o sanitarista Paulo Amarante, pesquisador e presidente da Associação Brasileira de Saúde Mental

Não se pode medir depressão como se mede glicemia, anemia ou hipertensão. Por se tratar de problema para o qual não há um índice padrão de detecção, a depressão tornou-se um conceito maleável, posto a serviço dos interesses da indústria farmacêutica, para incrementar a venda de medicamentos. “Elegeu-se a depressão como doença a ser cada vez mais alargada, para abarcar situações da vida, como conflitos, desgosto, desemprego, separação, luto, e formatar como doença”, analisa nesta entrevista ao blog do CEE-Fiocruz o sanitarista Paulo Amarante, vice-presidente da Abrasco, pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Saúde Mental e Atenção Psicossocial, da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Laps/Ensp/Fiocruz) e presidente honoris causa da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme).

Paulo alerta quanto aos malefícios das drogas prescritas, em especial os antidepressivos, que podem ser mais prejudiciais do que aquilo que buscam combater. “Começou-se a observar que esses medicamentos geram dependência e que sua suspensão e retirada é tão difícil quanto a de uma droga ilícita ou do álcool. E praticamente não há serviço especializado no mundo nesse tipo de desintoxicação”, aponta.

Os laboratórios farmacêuticos, no entanto, denuncia Paulo, encomendam e financiam pesquisas que patologizem o comportamento das pessoas diante de dificuldades cotidianas. Ele cita, entre as investigações realizadas nesse sentido, a do jornalista americano Robert Whitaker, vencedor em 2010 do Investigative Reporters and Editors Book Award, pelo livro Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. O livro será lançado no Brasil em 3/7/2017, pela Editora Fiocruz.

Co-editor, com o pesquisador Fernando Freitas, do site Mad in Brasil, versão brasileira do site Mad in America, para integrar a comunidade de língua portuguesa à rede internacional, ampliando o diálogo voltado à construção de um novo paradigma de assistência psiquiátrica, Paulo também está concluindo um novo livro, Lugares da memória: causos, contos e crônicas, sobre loucos e loucuras. O livro reunirá relatos de situações que ele recolheu ao longo de sua trajetória e terá prefácio do antropólogo italiano Massimo Canevatti e Eduardo Torre.

O tema dos medicamentos prescritos será discutido em seminário internacional, a ser realizado pelo Laps, com apoio do CEE-Fiocruz, nos dias 30 e 31/10 e 1º/11/2017, no auditório da Ensp. Robert Whitaker está entre os nomes já confirmados, ao lado de Lisa Cosgrove, professora de Psicologia Clínica da Universidade de Massachussets-Boston, co-autora com o jornalista do livro Psiquiatria sob influência: corrupção institucional, danos sociais e proposições para a reforma, e Jaakko Seikkula, da Finlância, à frente da experiência do Diálogo Aberto (Open Dialogue), abordagem que reduziu os diagnósticos de esquizofrenia no país. “A vida não é uma norma. Cada vida é muito pessoal”, observa Paulo. “O normal não é o estado de bem estar eterno, permanente, ideal. O normal é a capacidade de reação às adversidades”.

Leia a seguir a íntegra da entrevista.
 
De que forma as drogas prescritas são um problema de saúde pública, e como está esse entendimento por parte da sociedade?

A questão das drogas prescritas tem sido levantada há alguns anos. Tinha-se a concepção de que o uso das drogas psiquiátricas como tratamento para os transtornos mentais era um grande avanço da medicina, da bioquímica, da indústria farmacêutica. Isso vem desde os primeiros tratamentos, logo após a Segunda Guerra Mundial, com o primeiro antipsicótico, a clorpromazina. De lá para cá, vieram sendo produzidos antipsicóticos de segunda e terceira gerações, antidepressivos etc. A ideia de avanço estava no imaginário dos profissionais. Isso, no entanto, passou a ser duramente questionado por psiquiatras que começaram a ver que não eram só as drogas psiquiátricas que possibilitavam uma ressocialização, como argumentava a indústria farmacêutica. A superação do modelo manicomial, da prática asilar, com a adoção de outras práticas de participação social, coletivização, resgatando os sujeitos, sem submetê-los a constrangimentos, segregação e exclusão, surtia efeito muito importante. Uma das marcas da ciência moderna é romper com essa explicação simplista de causa efeito, e, nesse caso, de que a causa do transtorno é uma alteração bioquímica. O homem é um ser complexo, e as alterações bioquímicas não seriam causa, nem necessariamente efeito. É algo simultâneo; o homem pensa a partir de processos simbólicos e neuroquímicos ao mesmo tempo. A teoria do distúrbio neuroquímico vem sendo criticada desde a década de 1970, e só não cai devido a um forte interesse mercadológico. No caso dos antidepressivos, principalmente, pesquisas muito sérias mostram que eles têm efeito igual ou inferior ao placebo, à psicoterapia ou a outras abordagens não científicas, como as religiosas. Há ainda os grupos comunitários que se organizam para dar suporte, os amigos…
 
Que pesquisas vêm sendo feitas nesse sentido?

No âmbito da própria medicina, temos o Peter Gotzsche, um dos fundadores da Biblioteca Cochrane , que reúne pesquisas baseadas em evidências, e Joanna Moncrieff, da University College London, uma das fundadoras da Rede de Psiquiatria Crítica [ver aqui]. Há também as pesquisas realizadas por formadores de opinião, como o jornalista Robert Whitaker, que ganhou o prêmio de jornalismo investigativo, em 2010, com o livro Anatomia de uma epidemia: pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental, e a professora Lisa Cosgrove, da Universidade de Massachussets-Boston. A eficácia dos medicamentos passou a ser questionada, mostrando-se que podem ser auxiliares, paliativos, opcionais em alguma situação, mas não permanentemente, não exclusivamente. Mais recentemente, começou-se a levantar, ainda, que os antidepressivos causam dependência química, levando a uma síndrome de abstinência quando retirados, confundida com recidiva da depressão. Sem o medicamento, a pessoa volta a ter um quadro depressivo, como se fosse um retrocesso. Como, ao receber o antidepressivo novamente, ela melhora, essa melhora é associada ao medicamento, como se fosse a mesma coisa que uma infecção, que pode voltar se o antibiótico for suspenso. Na verdade, o que há é uma situação de abstinência.

Essas questões foram trazidas à tona pela OMS, que definiu a depressão como tema de campanha pelo Dia Mundial da Saúde de 2017, em abril…

A OMS chamou atenção para o uso indiscriminado de antidepressivos, sua suspensão e retirada, tão difícil quanto a de uma droga ilícita ou do álcool. As pessoas não podem parar de imediato; têm sintomas de abstinência, como insônia, irritabilidade, palpitações, um mal estar por vezes insuportável. E não há serviço especializado no mundo em desintoxicação de antidepressivos; não há técnicas, estudos para lidar com isso, porque durante muito tempo a psiquiatria negou que esses medicamentos causariam síndrome de abstinência nesse nível. A OMS agora reconheceu pela primeira vez em dois relatórios importantes que os antidepressivos causam dependência e que seu uso da forma como se dá no mundo inteiro é um problema maior que a depressão em si. É como se disséssemos que o uso de antibiótico causa mais problemas que a infecção.

O problema das drogas prescritas representa, então, mais um embate entre saúde e mercado…

É sempre a política de mercado versus a política de saúde. O trabalho de Robert Whitaker mostra como a indústria farmacêutica e a classe psiquiátrica estão mancomunadas para produzir, com pesquisas, uma elasticidade no conceito de depressão de forma a abarcar situações da vida cotidiana como conflitos, desemprego, desgosto, separação, luto. Essas situações começaram a ser formatadas como depressão. De fato, é possível moldar um comportamento. Como o ser humano é muito sugestionável, se dissermos que o que ele tem é depressão, ele passa a ter. Se a mídia mostra depoimentos de pessoas importantes  que dizem “fui depressivo”, “tenho toque”, “tenho pânico”, isso causa um efeito…
 
O que é depressão, afinal? Ela existe como doença?

Não temos um critério definitivo. Não se pode medir depressão como se mede glicemia, anemia ou hipertensão, não há um índice padrão ou um índice médio permanente. Trata-se de um conceito, e, exatamente por ser tão maleável, tão subjetivo, tornou-se propício a que se elegesse a depressão como a doença a ser cada vez mais alargada. Pânico, obsessão-compulsão, transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH)… No caso dessa última, os pais são levados a mudar seu olhar para ver na criança não alguém rebelde, em crescimento, mas alguém com uma patologia. Problemas cotidianos, escola fracassada – não apenas a escola pública brasileira, mas o modelo de ensino, sua proposta já superada –, pobreza, falta de recursos, baixos salários, tudo contribui para uma piora do quadro. Há também as situações de crise evolutivas, como entrada na terceira idade, iniciação na vida sexual, incapacidade de realização de ato sexual, saída da primeira infância para a puberdade, entrada na vida adulta, crises de identidade que podem vir acompanhadas de uma certa situação depressiva. E o comportamento das pessoas diante das dificuldades acaba sendo patologizado. O livro de Allen Frances, Salvando o normal, é uma crítica a essa ampliação do conceito de anormalidade.

O que é importante entendermos sobre normalidade e anormalidade?

A vida não é uma norma, há diferentes padrões, cada vida é muito pessoal. Podemos inventar a doença, ampliar o conceito de doença e patologizar todo o sofrimento, ou podemos inventar e ampliar o conceito de saúde. O normal não é o estado de bem estar eterno, permanente, ideal. O normal é a capacidade de reação às adversidades – pois elas existem – criando-se normas. A normatividade é a capacidade do ser vivo de criar normas; elas não existem de antemão. A saúde está em lidar com a situação de doença. O câncer é normal na vida; se há um corte no braço, o organismo encontra um caminho para o sangue passar, ou cria a cicatriz para organizar a pele, assim como cria a febre para reagir à infecção. Essa capacidade de criação de normas é muito pessoal. Há princípios gerais, mas nunca são universais e idênticos. O título do livro de Allen Frances, Saving de normal, que da tradução em inglês seria Salvando o normal, traz um conceito interessante: salvar o normal é admitir que existe o normal e que nem tudo pode ser considerando patológico. A editora no Brasil, no entanto, traduziu o título para Voltando ao normal, o que muda totalmente o sentido, pois parte-se do princípio de que há um padrão a ser buscado, ao qual retornar. Não estamos falando de padrão, mas de normatividade, da capacidade de criação de normas. Há muitos autores no mundo trabalhando nessa questão.

Existe um momento ou situação em que um cuidado especial torna-se necessário?

Existem alguns princípios, como estado de tristeza profunda inexplicável, perda de ânimo, com ideias de ruína, autodesvalorização, autodestruição, ideias persecutórias, sem um fato relacionado a isso, sem que haja situação de luto, desemprego, separação, enfim, um disparador. Se uma situação foge à explicação racional, a um entendimento racional, podemos dizer que se trata de depressão. Mesmo isso, no entanto, deve ser relativizado. O DSM 5 [quinta e mais recente edição, de 2013, do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, da Associação Americana de Psiquiatria, que teve a primeira publicação em 1952, e lista categorias e critérios para diagnóstico dos transtornos mentais] diz que em algumas situações o luto a partir de seis meses já deve ser considerado patológico. Esse é um critério absurdo; como se o luto fosse comum em todas as sociedades e culturas. Os bororo fazem um ritual muito diferente do das viúvas espanholas, de origem latina. Minha mãe ficou um ano de preto, quando meu pai faleceu. Não era um processo individual, era cultural também.
 
A OMS contabiliza cerca de 300 milhões com depressão. Esse número seria superestimado, então?

Nesse caso, estamos falando dessa situação de patologização. Um dos trabalhos do Bob [Robert Whitaker], que foi o primeiro a apontar os reais interesses envolvidos nesse processo, mostrou que os laboratórios pagam milhões aos médicos para fazerem pesquisas e fundamentarem as situações de mal estar como patológicas. O sofrimento necessário, humano, é patologizado. Em outro livro seu, Psiquiatria sob influência: corrupção institucional, danos sociais e proposições para a reforma, Bob mostra como os laboratórios vão aos centros de pesquisa, financiam estudos e, ao longo do tempo, compram resultados. Ele conta como conseguiu, no Senado americano, acessar as contas das empresas, para comprovar que um pesquisador  chegou a receber um milhão e duzentos mil dólares em um ano para prestar consultoria a um laboratório, escrever artigos e fazer palestras indicando um medicamento que ele pesquisava daquele mesmo laboratório! Bob mostra por análise de discurso como os artigos eram escritos pelo próprio laboratório, não pelo pesquisador. Marcia Angell, que foi por muitos anos editora do New England Journal of Medicine e tem como um de seus grandes temas o medicamento psiquiátrico, também desmente os laboratórios, neste caso, quando alegam que os medicamentos são caros porque há grande investimento em tecnologia. Quem investe em tecnologia são os serviços públicos, quando  conseguem comprar as patentes dos laboratórios e produzir medicamentos acessíveis à população, ou as empresas privadas de tecnologia individual. Os laboratórios farmacêuticos não investem em tecnologia, investem fundamentalmente em publicidade.

Mas nem todo médico age de má fé ao prescrever esses medicamentos…

Os laboratórios têm também estratégias para os médicos em seus consultórios. Uma é levando representantes para apresentação dos medicamentos, com amostras e brindes. Em alguns países, como Estados Unidos e Espanha há um movimento, o No, thank you, ou No, gracias, de médicos que não aceitam os representantes dos laboratórios. Você entra no consultório do médico, e está lá: a agenda é Prozac, a caneta é Prozac, o bloquinho é Prozac, o calendário é Prozac, e ele receita o Prozac, consciente ou inconscientemente. Os laboratórios também oferecem vouchers para jantares nas churrascarias mais caras da cidade, convidam para ir aos congressos no exterior, pagam as passagens, muitas vezes em primeira classe, pagam hospedagem. Nos congressos, dão notebooks de brinde, dão balas e chocolates dentro das embalagens de medicamentos, a caixinha do remédio com amendoim coberto de chocolate dentro. Tenho algumas guardadas. Isso é uma produção simbólica que tem influência na forma de prescrever.
 
Como romper com tudo isso?

Médicos, pesquisadores, professores teriam que ter um compromisso ético com o paciente e com a sociedade, não com os laboratórios farmacêuticos. É um princípio e deveria haver políticas públicas voltadas a isso. Os laboratórios públicos de pesquisa, ligados a universidades, não poderiam ter financiamento direto da indústria farmacêutica. Já pesquisei, apontei e encaminhei essa reivindicação para o Conselho de Medicina, mas não dá em nada. Esses laboratórios recebem dinheiro da indústria para encomendas específicas. Essa relação deveria ser intermediada pela Capes, pelo CNPq, para onde os laboratórios encaminhariam os recursos, constituindo o Fundo Nacional de Pesquisa. E as universidades concorreriam. Isso não pode ser feito diretamente com a indústria; coloca-se em xeque a autonomia do laboratório público. Presenciei a apresentação de uma pesquisa mostrando aumento assustador do diagnóstico psiquiátrico em São Paulo. Na hora, eu disse ao pesquisador: “Você me assustou, nem vou mais a São Paulo, pois a cidade está muito doente!”. E perguntei: “Você recebe dinheiro diretamente do laboratório farmacêutico?”. A pessoa respondeu que recebia, mas que isso não interferia em sua pesquisa. Eu disse que ela precisaria me provar que não interferia, pois o resultado da pesquisa mostrava que sim. Tanto a indústria farmacêutica, quanto as do tabaco e do álcool deveriam pagar um subsídio, um imposto a centros financiadores que, estes sim, acompanhariam as pesquisas. Aí sim, poderíamos pesquisar se a maconha tem efeito medicinal ou nocivo, se o uso de ritalina é ou não positivo, de forma independente.

Nesse embate entre saúde e mercado, como desmedicalizar sintomas, sem, no entanto, minimizar o sofrimento das pessoas? Afinal, a depressão é tida como doença silenciosa, em que as pessoas que sofrem não são ouvidas ou acolhidas.

Somos criados na relação com o outro; nossa identidade está nessa relação. A necessidade de reflexão, introspecção, escuta é imanente, constituinte do sujeito. Essa, no entanto, não é uma questão exclusivamente médico-sanitária, somente do âmbito da saúde. As comunidades ditas primitivas são muito mais sábias nisso, com seus métodos de relações de vizinhança, de cooperação, para fazer frente a essa necessidade. Nós temos essas redes, mas não valorizamos! Na comunidade aqui do lado vemos uma mãe que perdeu um filho contar com uma rede de apoio, de solidariedade das vizinhas que vão dormir com ela, que levam um bolinho… Mas isso não é valorizado. A primeira coisa que se faz quando se perde alguém é tomar um antidepressivo para suportar a crise. O que é preciso, no entanto, é viver aquela crise, e as redes são importantes para isso. Mas como não se dá valor a elas, e o Estado não sabe como propiciar esse acolhimento por meio de uma política pública, e, ainda, como há uma quebra de relações de comunidade promovida pela televisão, pelo medo e pela insegurança, a Igreja acaba ocupando esse espaço. No meu bairro as pessoas sequer se cumprimentam dentro do elevador. Elas não se abrem em sua comunidade, vão para a Igreja fazer uma catarse espiritual ou vão procurar um médico. A questão da depressão é paradigmática, aponta para a ausência do outro, da rede de solidariedade nas grandes cidades. Com as perdas de vínculo, as pessoas ficam sós. O importante seria podermos restabelecer vínculos.

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